domingo, 20 de maio de 2012

Harold Pinter - 2 poemas + comentário à tradução

Ao contrário do que se passa nas peças de teatro de Harold Pinter, cujos temas principais estão relacionados com uma visão existencialista do mundo — as limitações humanas, os afectos, a busca da verdade — que acabou por caracterizar o seu estilo muito próprio, os seus poemas sempre foram muito mais virados para as suas preocupações mais íntimas. Em vez de serem um reflexo de uma humanidade, desesperada por afecto, incapaz de reconhecer a verdade da mentira, como é a escrita para teatro de Pinter, a poesia apresenta-se como um escape, como uma forma de expressão do homem por trás do dramaturgo, sem preocupações a nível de aceitação pelo público ou pela crítica. Não é de admirar, portanto, que a poesia tenha sido a primeira e a última forma de escrita  a que Harold Pinter se tenha dedicado; e não é de estranhar que as motivações por trás destes poemas sejam puramente pessoais.

O primeiro poema, "America football", é uma grande metáfora acerca da intervenção dos EUA no Iraque e revela o espírito políticamente activista — anti-americano — que Pinter, mais ou menos dissimuladamente, imprimia em todos o seus trabalhos. A linguagem extremamente agressiva, e inspira-se no discurso típico na prática de futebol americano, um dos mais brutais do mundo.
O maior desafio, na tradução deste poema foi, sobretudo, fazer a adaptação do calão utilizado e manter um discurso agressivo sabendo, de antemão, que o verdadeiro tema aqui é a guerra e não um mero jogo.


Futebol Americano

Aleluia!
Funciona.
Arrebentámos-lhes(1) com aquela merda toda.

Arrebentámos-lhes com aquela merda pelo cu acima
até lhes saír pela porra das orelhas.

Funciona.
Arrebentámos-lhes aquela merda toda.
Sufocaram na sua própria merda!

Aleluia!
Louvado seja o Senhor por tudo o que há de bom.

Escaqueirámo-los(2) num monte de merda
Estão a comê-la

Louvado seja o Senhor por tudo o que há de bom.

Escaqueirámos-lhes os tomates em pó,
em porra de cacos de pó.

Conseguimos.

Agora quero que venhas cá beijar-me na boca.
 
(1) Estando no universo de uma linguagem rude e de calão, optou-se por "arrebentar" em vez de "rebentar" pelo facto de o primeiro ter uma expressão mais onomatopeica, soando a um grito bárbaro como "Arrrrgh!".

(2) Existe um paralelismo, no texto original, no começo dos versos com o verbo "blow". No entanto este é utilizado na sua forma de "phrasal verb" que permite uma variedade semântica grande ao mesmo tempo que permite a sua repetição — "blew out", "blew up", "blew out", "blew into". Ora, em português o verbo, "arrebentar/rebentar" não permite ter tantas opções com em inglês: "blew into" remete para um tipo transformação que o verbo "arrebentar/rebentar" não tem. Assim, em vez de "Arrebentámos-lhes os tomates até ficarem em cacos de pó" propomos uma versão mais económica "Escaqueirámos-lhes os tomates em pó" mesmo comprometendo a repetição do texto original.

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O segundo poema é bem mais pessoal e remete para a luta que Harold Pinter travou contra um cancro no esófago que acabou por lhe tirar a vida. A principal dificuldade foi conseguir preservar as frases curtas e a economia das palavras que dão ao poema o ar de ser o último sopro de vida de um homem às portas da morte.

"As células do cancro são aquelas que se esqueceram
como se morre" - enfermeira, hospital de Royal Marsden

Esqueceram-se como se morre
e assim prolongam a sua vida assassina.

Eu e o meu tumor lutamos a todo custo.
(1)Que uma morte dupla seja posta de parte.

Preciso de ver o meu tumor morto
Um tumor que se esquece de morrer
Mas que em vez disso me quer assassinar.

Mas eu lembro-me como se morre
Embora todas as minhas testemunhas morreram.
Mas eu lembro-me o que disseram
De tumores que as tornariam (2)
Tão cegas e mudas como foram
Antes do nascer(3) dessa doença
Que pôs o tumor em cena.

As células negras mirrarão e morrerão
Ou será à sua maneira e cantarão de alegria.
Procriam tão silentes noite e dia,
Nunca se sabe, elas nunca dizem.


(1) Para uma maior economia de palavras, optou-se por suprimir a palavra "esperemos"/"let's hope" e usar o conjuntivo, de modo a exprimir desejo.

(2) Em termos semânticos, o verbo "render" tem inúmeras possibilidades, o que torna o seu significado, neste caso, muito ambíguo — pode ir desde "dar", "tornar" até "render-se", que também teria alguma razão de ser, dado o contexto. Aqui optei por "tornar" já que temos uma mudança de qualidades no que se refere ao sujeito do verso (as testemunhas ficaram mudas e cegas)

(3) Normalmente nominalizações de verbos são de se evitar, mas neste caso o verso ficaria demasiado longo com a palavra "nascimento".

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