terça-feira, 13 de março de 2012





Andar para trás, Olhar em frente, uma Crónica

A literatura é mais um dos locais onde o espírito humano deixa transparecer muito do mundo que subjaz aos seus criadores. E, como nenhum deles é uma ilha, embora possa viver nela, reflecte de algum modo algo mais do que apenas o seu eu.
-Onésimo T. Almeida, Açores, Açorianos, Açorianidade1

Sou ainda relativamente inexperiente nesta questão dos “Escritos Dispersos”, literatura açoriana, literatura luso-americana, escrita de Diáspora. Fascina-me o esforço por nomear e definir um tema. Não sou académico, editor ou tradutor, mas a ser algo, sou um “escritor disperso” e, tendo aterrado nesta ilha, suponho que estou aproximadamente no sítio certo. Disperso, quer dizer que escrevi sobre diferentes assuntos em meios diversos, um dos quais foi um ensaio sobre bandas filarmónicas açorianas, as festas do Espírito Santo e a imigração. Disperso, também, porque nunca fui capaz de me interessar apenas por uma coisa de cada vez. Tal traz consigo alguns problemas, mas neste caso torna-me inteiramente habilitado para estar onde estou.

Quando tento aqui abrir a boca para falar (escrever também é, creio eu, falar, a música é só um pouco diferente) vem-me à memória um comentário do realizador Frederico Fellini sobre o seu trabalho: «Mesmo que eu quisesse fazer um filme sobre bacalhau, seria, ainda assim, um filme sobre mim». Fellini era italiano, mas o que ele disse é uma grande verdade e há a questão da sua escolha de peixe, o bacalhau. E os seus filmes são extraordinários. Recentemente pensei que se ele fosse açoriano, teríamos um cânone cinematográfico extraordinariamente revelador sobre as ilhas e as suas gentes. Gostaria de dizer aqui algo de útil sobre o vosso tema, Escritas Dispersas, Convergência de Afectos, mas aviso-vos que estarei, ainda assim, a falar de mim, ou sobre alguém que é como eu e escreve este texto. Por isso, farei o que sei melhor: exagerar. É isto o que eu sou, e por isto estou aqui.

Eu sou um imigrante cultural.

1. movimento
Há alguns anos atrás, deixei uma pequena e bela vila na amena costa da Califórnia, e mudei-me para a fria, fascinante e bilingue Montreal, no Quebeque, a uma distância de 3982 quilómetros, dependendo da rota que se tome. Diziam-me que cometia uma loucura. Acabara de haver um referendo sobre a separação do Quebeque. Outro se seguiria poucos anos depois. Aprendi uma nova língua, o francês, e os anos foram passando. Tudo isto era uma escolha e, considerada através da penetrante retrospetiva turva, não foi uma completa loucura. Agora aprendo uma velha língua, o português, igualmente uma escolha e algo mais, mas tampouco uma completa loucura. Ando para trás a fim de descobrir os passos que me precedem ou ando em frente para descobrir aonde levam. Obviamente, ambos.

Quando adolescente, o meu pai, juntamente com os seis irmãos e seus pais açorianos nascidos na América, deixaram o trabalho, como meeiros, numa quinta próxima de uma represa na costa central da Califórnia, e mudaram-se 21 quilómetros para o interior da vila, onde abriram um negócio familiar. Foi uma opção estratégica, numa época apelidada de “Estrondosos Anos 20”, e resultou na troca das tarefas rurais de plantar feijões e ordenhar as vacas nas terras de outra pessoa pelo aluguer de quartos, venda de gasolina e gestão de uma pequena mercearia no seu motel caseiro chamado “Ideal”. Apesar de não ter nada de “estrondoso”, o seu pequeno negócio prosperou modestamente, e nunca ouvi ninguém dizer que tinha sido uma má jogada. O meu pai compreendia os mais velhos quando eles falavam português, pelo menos assim afirmava, mas não falava ele próprio a língua, nem tentou ensinar-me. «Nós falávamos americano», dizia-me, «nunca pensei que um dia quisesses aprender português». Dizia também: «A nós não nos verás na fila da segurança social». Este “nós” era o termo essencial da sua afirmação, e queria dizer “portugueses”. Tudo isto me parecia importante, apesar de aos 7 anos de idade eu não saber ainda muito bem como ou porquê. Paralelamente, a única frase em português que eu aprendi durante a minha infância, ensinada, julgo, por uma criada açoriana do motel, que lá ficou dos tempos do meu avô, foi «cala a boca, cala a boca, tu não sabes falar». Talvez a pobre mulher estivesse cansada da nossa tagarelice incessante e pensasse que ensinar-nos um pouco da velha língua fosse uma maneira de nos calar. Mas pelo contrário, nós cantávamo-la como uma canção, e julgávamo-nos sábios e especiais no nosso Motel Ideal. Eu apregoava a expressão despreocupadamente, misturada com algumas palavras espanholas pouco adequadas. E a tal se resumiu a minha educação poliglota. Décadas mais tarde, aqui estou eu nesta ilha tentando abrir «a boca calada».

Concebido, mas ainda não nascido, a primeira viagem do meu avô seria também a sua mais longa. Aconteceu no que suponho que seria o caloroso conforto do ventre da sua mãe, uma mulher cujo nome continha a palavra e a noção da sua presença, Conceição, comum entre as mulheres das ilhas. A sua conceção, importa referir, foi o resultado do breve mas fértil regresso de seu pai ao Pico, para ir buscar a sua mulher e seus dois filhos mais velhos, após ter imigrado dois anos antes para a Califórnia. A palavra “Diáspora”, de origem grega, designa a dispersão de sementes. Esta viajem foi o começo da sua dispersão, tal como foi para um barco cheio de outros. Outra semente era levada dentro de Ana Conceição, o meu avô, e assim o destino de duas diásporas uniu-se intimamente, grãos lançados para brotarem noutros lugares. A distância das Lajes do Pico até à Costa Central da Califórnia era de cerca de 8000 quilómetros no total, passando pelo presumivelmente frio e turbulento Oceano Atlântico, e atravessando, depois, todo o continente norte americano, onde a cavalaria ainda afugentava índios para longe dos caminhos-de-ferro. Faltavam quinze anos para a chegada do século 20.

Tanto quanto sei, ninguém do nosso clã escrevia ou tinha qualquer interesse por literatura formal. O meu avô memorizava estatísticas de basebol, lia o Sporting News e adorava ver westerns na televisão. Num sábado à tarde, tocava viola da terra para os seus amigos do Pico, e eu via-o como o patriarca benevolente de uma família de gente generosa que gostava de contar histórias e anedotas, dada à hipérbole e verbosa criação de mitos à roda do lume do grelhador. O seu funeral foi para mim um evento nacional, e como prova contava os carros estacionados em dupla fila à volta da igreja. Para uma criança, tal foi um digno entretenimento. Para um adulto curioso, torna bastante complexa a tarefa de estabelecer a história verdadeira, se é que há uma e é mesmo necessário fazê-lo. Estas pessoas, o “nós”, não eram nem sóbrias nem sombrias, e a memória delas é voluntariamente, talvez perigosamente, romantizada com o tempo. Mas nós somos, no fim de contas, sujeitos e não objetos, e nos nossos mais extravagantes sonhos fazemos filmes sobre bacalhau. Querer equilibrar estas perspetivas é outra das razões que me traz aqui. Esta é a soma do que eu sabia sobre os açorianos ou os portugueses até há um par de anos atrás.

Não conheço mais detalhes acerca da “nossa” Diáspora através do oceano, e constantemente duvido daqueles que eu relato, pois a exatidão não era, para nós, uma qualidade tão sagrada quanto o trabalho árduo. Aquilo que contei soa demasiado bíblico, quando na verdade deve ter sido entediante e banal, à semelhança de tantas outras histórias. Ainda assim. O meu interesse pela genealogia é, na verdade, secundário, pois as palavras e a literatura são tão família, para mim, quanto as pessoas. É esta a verdadeira razão de eu estar aqui. Busco as raízes ancestrais das minhas palavras, as suas datas e detalhes, as suas figuras e faces. Quero saber quem nasceu dessas palavras, como viveram e onde. Não ossos, mas sons e almas. O que fizeram das suas vidas? Quero colar a minha face às lápides dessas palavras, chorar os bebés mortos, seguir as sombras e os murmúrios, refazer os seus passos, ouvir as suas histórias e anedotas, atravessar as portas baixas das suas velhas casas. O meu nome, em comparação, tem muito pouco significado. Quero conhecer os familiares surpreendentes dessa língua, tocar as imagens desbotadas, saber como o sangue se misturou, e pasmar-me perante o modo como o tempo os mudou. Quero almoçar com a família das minhas próprias palavras. Não sou absolutamente nada para além delas. Nós. Pó, bacalhau, ilhas dispersas. Por minha sanidade e assombro tenho que descobrir os caminhos desde a sua origem até à minha própria enunciação, e é escasso o tempo para o fazer.

Sei que nada disto é invulgar e que já o leram e ouviram vez sem conta. Eu também, mas sempre que penso que é mera repetição, vejo que a história se alterou e por isso prossigo. As suas intermináveis reconfigurações e variações cantam-me uma música para qual me acho incapaz de resistir a mover-me. Por vezes a história torna-se tão débil que temo que se faça inaudível. Estou aqui para escutar. Então, outra alma errante parte de um ilh-(eu), por águas escuras adentro, levada num pequeno barco, com uma trouxa de suas posses e um coração tenso.

2. impureza
A menos que adiramos às mais puras e anacrónicas noções de raça, cultura e etnia, é fácil admitir que somos todos imigrantes, culturalmente e não só: uma única e constante mistura e remistura. A investigação em engenharia genética diz-nos que todos nós podemos recuar as nossas origens até a uma única família desgovernada: Tio Napoleão, Tia Cleópatra. Tal como a mistura de sangue, a mestiçagem de influências culturais é tão real num mundo globalizado quanto era nos mundos colonial e imperial que o precederam. As diferenças contemporâneas assinaláveis são, possivelmente, a rapidez e extensão em que a mistura agora ocorre e as influências circulam. A pretensão de pureza é um mito e a maioria das pessoas reconhece o seu perigo. Nós somos variantes coletivas daquilo e daqueles que nos precederam, únicos somente enquanto momento no longo processo. As petrushka russas são uma metáfora interessante mas inadequada, a menos que notemos uma pequena diferença de boneca para boneca. Podemos considerar muitos dos conflitos mundiais actuais como sendo o resultado de confrontos ideológicos e territoriais envolvendo a questão da identidade. Como podemos aceitar a dinâmica essencial da própria vida, da história, e a sua resistência natural à pureza, as suas mutações iminentes, e ainda assim preservar uma identidade? Dispersemos mais sementes. Plantemos novas palavras. Escrevamos em frente. Espalhemos a riqueza da literatura açoriana e de diáspora existentes e abracemos a inevitável mutação da identidade e da língua pelo potencial criativo que prometem.

Mudança no oceano, mudança no mar
volta meu amor acharás mudança em mim
Oiçam todos, algum dia teremos que mudar
pois cedo ou tarde iremos estar sob esse chão de solidão.
Sleepy John Estes, cantor negro americano de blues

Comecei a marchar numa banda filarmónica açoriana em Montreal. Toda a gente era de São Miguel. Eles assumiram que também uma parte de mim o seria e fui logo bem recebido no grupo, apesar de eu, timidamente, persistir em tentar corrigir a falsa impressão, dizendo «Pico». É preciso começar a procurar por algum lado, e enquanto tentava que os meus pés se movessem ao ritmo certo, decidi escrever sobre a experiência, as pessoas e a comunidade que ia descobrindo. Tentava desenredar os meus passos enquanto colocava as questões irritantes que são trazidas pelo viver uma vida contemporânea: onde fica o passado, para onde nos dirigimos, de que é que somos feitos? “Global” quer dizer que tudo nos pertence ou que nada é nosso? Na busca de respostas, deambulei com uma banda filarmónica e choquei diretamente com uma mina de ouro de literatura açoriana, por via da editora Gavéa-Brown: traduções, poesia, ensaios, memórias, edições bilingue, comentários e entrevistas. Tal levou-me a outras fontes, nomes, histórias, e o filão fora descoberto. Eureka! Era como ouvir uma banda filarmónica aproximando-se a quilómetros de distância. Demarquei o meu território. Precioso metal subterrâneo era vigorosamente expelido a partir de uma cadeia de nove ilhas vulcânicas. Serão estas as riquezas pelas quais os navegadores percorreram os mares buscando-as durante séculos?

«O sortudo és tu», disse-me misteriosamente õ meu pai, certa vez, quando tinha 17 de idade. Anos mais tarde compreendi aquele comentário como sendo a minha sina, um dom sagrado e um bilhete para uma aventura irresistível. Ele tornava agora o “nós” em “tu”. A sorte do destino havia de me ligar a outros e, na minha errância, trazer-me até casa. Ele era cego para muitas coisas e um vidente de algumas outras. Calcei os seus sapatos negros de sola dura com que fiquei depois de ele falecer, e comecei a marchar com a banda filarmónica, a observar e a escrever. Foi um curso introdutório de antropologia cultural.

1Onésimo T. Almeida, Açores, Açorianos, Açorianidade- um espaço cultural, 1989, 121-122 .

Um comentário:

  1. Sugestões:
    Na última frase do 2º parágrafo substituir o ponto final por virgúla e em vez de "Tal traz consigo ..." - ", o que traz consigo ...".
    No 2º parágrafo de 1. Movimento falta o complemento directo ", nem tentou ensinar-me." substituir por "nem tentou ensinar-ma." (a língua).
    No 4º parágrafo de 1. Movimento, substituir "carros estacionados em dupla fila" por "estacionados em segunda fila".
    Em vez de "as palavras e a literatura são, para mim, tão parte da família quanto as pessoas", proponho "fazem parte da família tanto quanto as pessoas".
    Colocar "vez" no plural - "já o leram vezes sem conta".
    Falta o artigo definido "o" em "disse-me misteriosamente meu pai".
    Alguns pronomes possessivos desnecessários: "o seu pequeno negócio"; "e seus dois filhos mais velhos".

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