A literatura é mais um dos locais onde o espírito humano deixa transparecer muito do mundo que subjaz aos seus criadores. E, como nenhum deles é uma ilha, embora possa viver nela, reflecte de algum modo algo mais do que apenas o seu eu.
-Onésimo
T. Almeida,
Açores, Açorianos, Açorianidade1
Sou
ainda
relativamente inexperiente
nesta questão dos “Escritos Dispersos”, literatura açoriana,
literatura luso-americana, escrita de Diáspora.
Fascina-me
o esforço por
nomear e definir um tema. Não sou académico, editor ou tradutor,
mas a ser algo, sou um “escritor disperso” e, tendo aterrado
nesta ilha, suponho que estou aproximadamente no sítio certo.
Disperso, quer dizer que escrevi sobre diferentes assuntos em meios
diversos, um dos quais foi um ensaio sobre bandas filarmónicas
açorianas, as festas do Espírito Santo e a imigração. Disperso,
também, porque nunca fui capaz de me interessar apenas por uma coisa
de cada vez. Tal traz consigo alguns problemas, mas neste caso
torna-me inteiramente habilitado para estar onde estou.
Quando
tento aqui abrir a boca para falar (escrever também é, creio eu,
falar, a música é só um pouco diferente) vem-me à memória um
comentário do realizador Frederico Fellini sobre o seu trabalho:
«Mesmo que eu quisesse fazer um filme sobre bacalhau, seria, ainda
assim, um filme sobre mim». Fellini era italiano, mas o que ele
disse é uma grande verdade e há a questão da sua escolha de peixe,
o bacalhau. E os seus filmes são extraordinários. Recentemente
pensei que se ele fosse açoriano, teríamos um cânone
cinematográfico extraordinariamente revelador sobre as ilhas e as
suas gentes. Gostaria de dizer aqui algo de útil sobre o vosso tema,
Escritas
Dispersas, Convergência de Afectos,
mas aviso-vos que estarei, ainda assim, a falar de mim, ou sobre
alguém que é como eu e escreve este texto. Por isso, farei o que
sei melhor: exagerar. É isto o que eu sou, e por isto estou aqui.
Eu sou um imigrante cultural.
1. movimento
Há alguns anos atrás, deixei uma
pequena e bela vila na amena costa da Califórnia, e mudei-me para a
fria, fascinante e bilingue Montreal, no Quebeque, a uma distância
de 3982 quilómetros, dependendo da rota que se tome. Diziam-me que
cometia uma loucura. Acabara de haver um referendo sobre a separação
do Quebeque. Outro se seguiria poucos anos depois. Aprendi uma nova
língua, o francês, e os anos foram passando. Tudo isto era uma
escolha e, considerada através da penetrante retrospetiva turva, não
foi uma completa loucura. Agora aprendo uma velha língua, o
português, igualmente uma escolha e algo mais, mas tampouco uma
completa loucura. Ando para trás a fim de descobrir os passos que
me precedem ou ando em frente para descobrir aonde levam. Obviamente,
ambos.
Quando
adolescente, o meu pai, juntamente com os seis irmãos e seus pais
açorianos nascidos na América, deixaram o trabalho, como meeiros,
numa quinta próxima de uma represa na costa central da Califórnia,
e mudaram-se 21 quilómetros para o interior da vila, onde abriram um
negócio familiar. Foi uma opção estratégica, numa época
apelidada de “Estrondosos Anos 20”, e resultou na troca das
tarefas rurais de plantar feijões e ordenhar as vacas nas terras de
outra pessoa pelo aluguer de quartos, venda de gasolina e gestão de
uma pequena mercearia no seu motel caseiro chamado “Ideal”.
Apesar de não ter nada de “estrondoso”, o seu pequeno negócio
prosperou modestamente, e nunca ouvi ninguém dizer que tinha sido
uma má jogada. O meu pai compreendia os mais velhos quando eles
falavam português, pelo menos assim afirmava, mas não falava ele
próprio a língua, nem tentou ensinar-me. «Nós falávamos
americano», dizia-me, «nunca pensei que um dia quisesses aprender
português». Dizia também: «A nós não nos verás na fila da
segurança social». Este “nós” era o termo essencial da sua
afirmação,
e
queria dizer “portugueses”. Tudo isto me parecia importante,
apesar de
aos
7 anos
de
idade eu não saber ainda muito bem como ou porquê. Paralelamente, a
única frase em português que eu aprendi durante a minha infância,
ensinada, julgo, por uma criada açoriana do motel, que lá ficou dos
tempos do meu avô, foi «cala
a boca, cala a boca, tu não sabes falar». Talvez a pobre mulher
estivesse cansada da nossa tagarelice incessante e pensasse que
ensinar-nos um pouco da velha língua fosse uma maneira de nos calar.
Mas pelo contrário, nós cantávamo-la como uma canção, e
julgávamo-nos sábios e especiais no nosso Motel Ideal. Eu apregoava
a expressão despreocupadamente, misturada com algumas palavras
espanholas pouco adequadas.
E a tal se resumiu a minha educação poliglota. Décadas mais tarde,
aqui estou eu nesta ilha tentando abrir «a boca calada».
Concebido,
mas ainda não nascido, a primeira viagem do meu avô seria também a
sua mais longa. Aconteceu no que suponho que seria o caloroso
conforto do ventre da sua mãe, uma
mulher
cujo nome continha a palavra e a noção da sua presença, Conceição,
comum entre as mulheres das ilhas. A sua conceção, importa referir,
foi o resultado do breve mas fértil regresso de seu pai ao Pico,
para ir buscar a sua mulher e seus dois filhos mais velhos, após ter
imigrado dois anos antes para a Califórnia. A palavra “Diáspora”,
de origem grega, designa a dispersão de sementes. Esta viajem foi o
começo da sua dispersão, tal como foi para
um barco cheio de outros.
Outra semente era levada dentro de Ana Conceição, o meu avô, e
assim o destino de duas diásporas uniu-se intimamente, grãos
lançados para brotarem noutros lugares. A distância das Lajes do
Pico até à Costa Central da Califórnia era de cerca de 8000
quilómetros no total, passando pelo presumivelmente frio e
turbulento Oceano Atlântico, e atravessando, depois, todo o
continente norte americano, onde a cavalaria ainda afugentava índios
para longe dos caminhos-de-ferro. Faltavam quinze anos para a chegada
do século 20.
Tanto
quanto sei, ninguém do nosso clã escrevia ou tinha qualquer
interesse por literatura formal. O meu avô memorizava estatísticas
de basebol, lia o Sporting
News
e adorava ver westerns
na televisão. Num sábado à tarde, tocava viola da terra para os
seus amigos do Pico, e eu via-o como o patriarca benevolente de uma
família de gente generosa que gostava de contar histórias e
anedotas, dada
à hipérbole e verbosa criação de mitos à roda do lume do
grelhador. O seu funeral foi para mim um evento nacional, e como
prova contava os carros estacionados em dupla fila à volta da
igreja. Para uma criança, tal foi um digno entretenimento. Para um
adulto curioso, torna bastante complexa a tarefa de estabelecer a
história verdadeira, se é que há uma e é mesmo
necessário fazê-lo. Estas pessoas, o “nós”, não eram nem
sóbrias nem sombrias, e a memória delas é voluntariamente,
talvez perigosamente,
romantizada com o tempo. Mas nós somos, no fim de contas, sujeitos e
não objetos, e nos nossos mais extravagantes sonhos fazemos filmes
sobre bacalhau. Querer equilibrar estas perspetivas é outra das
razões que me
traz aqui.
Esta é a soma
do que eu sabia sobre os açorianos ou os portugueses até há um par
de anos atrás.
Não conheço mais detalhes
acerca da “nossa” Diáspora através do oceano, e constantemente
duvido daqueles que eu relato, pois a exatidão não era, para nós,
uma qualidade tão sagrada quanto o trabalho árduo. Aquilo que
contei soa demasiado bíblico, quando na verdade deve ter sido
entediante e banal, à semelhança de tantas outras histórias. Ainda
assim. O meu interesse pela genealogia é, na verdade, secundário,
pois as palavras e a literatura são
tão família, para mim, quanto as pessoas. É esta a
verdadeira razão de eu estar aqui. Busco as raízes ancestrais das
minhas palavras, as suas datas e
detalhes, as suas figuras e faces.
Quero saber quem nasceu dessas palavras, como viveram e onde. Não
ossos, mas sons e almas. O que fizeram das suas vidas? Quero colar a
minha face às lápides dessas palavras, chorar os bebés mortos,
seguir as sombras e os murmúrios, refazer os seus passos, ouvir as
suas histórias e anedotas, atravessar as portas baixas das suas
velhas casas. O meu nome, em comparação, tem muito pouco
significado. Quero conhecer os familiares surpreendentes dessa
língua, tocar as imagens desbotadas, saber como o sangue se
misturou, e pasmar-me perante o modo como o tempo os mudou. Quero
almoçar com a família das minhas próprias palavras. Não sou
absolutamente nada para além delas. Nós. Pó, bacalhau,
ilhas dispersas. Por minha
sanidade e assombro tenho que descobrir os caminhos desde a sua
origem até à minha própria enunciação, e é escasso o tempo para
o fazer.
Sei
que nada disto é invulgar e que já o leram e ouviram vez sem conta.
Eu também, mas sempre que penso que é mera repetição, vejo que a
história se alterou e por isso prossigo. As suas intermináveis
reconfigurações e variações cantam-me uma música para qual me
acho incapaz de resistir a mover-me. Por vezes a história torna-se
tão débil
que temo que se faça inaudível. Estou aqui para escutar. Então,
outra alma errante parte de um
ilh-(eu),
por águas escuras adentro, levada num pequeno barco, com uma trouxa
de
suas posses e um coração tenso.
2. impureza
A
menos que adiramos às mais puras e anacrónicas noções de raça,
cultura e
etnia,
é fácil admitir que somos todos imigrantes, culturalmente e
não só:
uma única e constante mistura e remistura. A investigação em
engenharia genética diz-nos que todos nós podemos recuar as nossas
origens até a uma única família desgovernada: Tio Napoleão, Tia
Cleópatra. Tal como a mistura de sangue, a mestiçagem
de
influências culturais é tão real num mundo globalizado quanto era
nos mundos colonial e imperial que o precederam. As diferenças
contemporâneas assinaláveis são, possivelmente, a rapidez e
extensão em que a mistura agora ocorre e as influências circulam. A
pretensão de pureza é um mito e a maioria das pessoas reconhece o
seu perigo. Nós somos variantes coletivas daquilo e daqueles que nos
precederam, únicos somente
enquanto momento no longo processo. As petrushka
russas são uma metáfora interessante mas inadequada, a menos que
notemos uma pequena diferença de boneca para boneca. Podemos
considerar muitos dos conflitos mundiais actuais como sendo o
resultado de confrontos ideológicos e territoriais envolvendo a
questão da identidade. Como podemos aceitar a dinâmica essencial da
própria vida, da história, e a sua resistência natural à pureza,
as suas mutações iminentes, e ainda assim preservar uma identidade?
Dispersemos mais sementes. Plantemos novas palavras. Escrevamos em
frente. Espalhemos a riqueza da literatura açoriana e de diáspora
existentes e abracemos a inevitável mutação da identidade e da
língua pelo potencial criativo que prometem.
Mudança
no oceano, mudança no mar
volta
meu amor acharás mudança em mim
Oiçam
todos, algum dia teremos que mudar
pois
cedo ou tarde iremos estar sob esse chão de solidão.
–
Sleepy
John Estes, cantor negro americano de blues
Comecei
a marchar numa banda filarmónica açoriana em Montreal. Toda a gente
era de São Miguel. Eles assumiram
que também uma parte de mim o seria e fui logo bem recebido no
grupo, apesar de eu, timidamente, persistir em tentar corrigir a
falsa impressão, dizendo «Pico». É preciso começar a procurar
por algum lado, e enquanto tentava que os meus pés se movessem ao
ritmo certo, decidi escrever sobre a experiência, as pessoas e a
comunidade que ia descobrindo. Tentava desenredar
os meus passos enquanto colocava as questões irritantes que
são trazidas
pelo viver uma vida contemporânea: onde fica o passado, para onde
nos dirigimos, de que é que somos feitos? “Global” quer dizer
que tudo nos pertence ou que nada é nosso? Na busca de respostas,
deambulei com uma banda filarmónica e choquei diretamente com uma
mina de ouro de literatura açoriana, por via da editora Gavéa-Brown:
traduções, poesia, ensaios, memórias, edições bilingue,
comentários e entrevistas. Tal levou-me a outras fontes, nomes,
histórias, e o filão fora descoberto.
Eureka! Era como ouvir uma banda filarmónica aproximando-se a
quilómetros de distância. Demarquei
o meu território. Precioso metal subterrâneo era vigorosamente
expelido a partir de uma cadeia de nove ilhas vulcânicas. Serão
estas as riquezas pelas quais os navegadores percorreram
os mares buscando-as durante séculos?
«O
sortudo és tu», disse-me misteriosamente õ meu pai, certa vez,
quando tinha 17 de idade. Anos mais tarde compreendi aquele
comentário como sendo a minha sina,
um dom sagrado e um bilhete para uma aventura irresistível. Ele
tornava agora o “nós” em “tu”. A sorte do destino havia de
me ligar a outros e, na minha errância, trazer-me até casa. Ele era
cego para muitas coisas e um vidente de algumas outras. Calcei os
seus sapatos negros de sola dura com que fiquei depois de ele
falecer, e comecei a marchar com a banda filarmónica, a observar e a
escrever. Foi um curso introdutório de antropologia cultural.
1Onésimo
T. Almeida, Açores, Açorianos, Açorianidade- um espaço cultural,
1989, 121-122 .
Sugestões:
ResponderExcluirNa última frase do 2º parágrafo substituir o ponto final por virgúla e em vez de "Tal traz consigo ..." - ", o que traz consigo ...".
No 2º parágrafo de 1. Movimento falta o complemento directo ", nem tentou ensinar-me." substituir por "nem tentou ensinar-ma." (a língua).
No 4º parágrafo de 1. Movimento, substituir "carros estacionados em dupla fila" por "estacionados em segunda fila".
Em vez de "as palavras e a literatura são, para mim, tão parte da família quanto as pessoas", proponho "fazem parte da família tanto quanto as pessoas".
Colocar "vez" no plural - "já o leram vezes sem conta".
Falta o artigo definido "o" em "disse-me misteriosamente meu pai".
Alguns pronomes possessivos desnecessários: "o seu pequeno negócio"; "e seus dois filhos mais velhos".