domingo, 25 de março de 2012


Traduções dos dois poemas de Frank Gaspar



Esnestina, a mulher do sapateiro



“Tens os olhos dele”, disse-me ela,

e virou-se para a minha velha tia “Esses são

os olhos que eu vi!” E voltava a contar

como São Francisco a agarrou no bosque

quando era uma jovem rapariga. Dominic,



o seu marido, nunca ficava sentado

quando ela falava disso, levantava-se lentamente

da cadeira Morris e ia lá para fora,

por entre as fiadas de couves e de milho

até ao seu celeiro, os seus martelos e formas.



“Ele deixou-me sem fôlego,”

disse ela, os finos dedos arqueados junto ao peito.

“Não foi o que pensas. Ele era um poder,

um animal. E a chuva começou a cair, e ele agarrava-me ali,

o meu vestido colado, o meu corpo mostrado.”



Quando eu queria escapar-me

e sentar-me entre as hervas de cheiro forte

no jardim, elas deixavam-me ir

e continuavam a falar por trás das cortinas

que inspiravam e expiravam no ar vagaroso,



e rezavam o terço juntas,

lengalengando pelos Mistérios. “Não a irrites,

disse-me a minha mãe. “É uma bruxa

e pode deitar-te mau olhado.”

“Essa conversa é uma tolice”, disse a minha tia.



Sempre que saíamos, a minha tia agarrava-me

pelos braços e inclinava-se – “Lembra-te,

o que ela conta foi apenas um sonho!”

Mas lembrava-me do martelar do Dominic como um sino,

e como ela disse que até as árvores molhadas estremeciam.





Quem é Hans Hofmann e porque é que o mundo o estima?



Assim entrámos nos quartos do Forasteiro

que vinha todos os verões mais o seu dinheiro da renda

que compraria o aquecimento invernal duma família,



E alguém acendeu um fósforo

e depois outro, mas não havia nada

para roubar neste sítio cheio de lixo



Apenas lonas e madeira e tinta

e ferramentas demasiado estranhas para qualquer

dos nossos toques, exceto uma faca.



De certo modo o sonho de um homem

brotou em verde e vermelho brutal,

quadrados opacos de amarelo, retângulos de azul.



Era algo de um outro mundo

e por isso voltámos de mansinho ao nosso  

fitas e grinaldas

e as embocaduras denteadas e floridas.





Variação sobre o poema

Ernestina the shoemaker’s wife



Trata-se de uma continuação imaginada do poema original, que temporalmente começa na mesma altura e termina anos mais tarde. O protagonista é o mesmo, Francisco/ Francis/ Frank (Gaspar).



Eu era um jovem impressionável então,

Tinha medo do escuro, e à noite,

em casa, olhava para trás de mim,

quando andava pelo corredor,

receoso que algum maléfico ser me atacasse



O dr. Richards mirava-me e abanava a cabeça.

Levavam-me a ele quando o terror noturno

era excessivo. “Não há demónios, nem assassinos,

nem bruxas, a não ser na tua imaginação”. Mas,

as sombras da casa ainda me arrepiavam.



Cresci, saí da terra para estudar, conheci mundo.

Fiz muitas viagens, andei por muitos sítios.

Um dia, cansado, regressei e voltei para a casa,

que mantivera fechada sem nunca a vender.

Era a mesma casa dos corredores da noite.



Tinham morrido, o Dominic e a Ernestina. A minha

tia igualmente. Já não havia ninguém do tempo de outrora.

O celeiro tinha ardido e em seu lugar havia agora

um cinema ao ar livre. Ao sábado à noite aquilo enchia-se,

e os namorados nos carros não viam o filme.



Numa noite sem lua, sem sono, fui dar um giro

e os meus passos levaram-me ao bosque, o mesmo

das aparições da velha bruxa. “Disparates”, sosseguei-me

enquanto andava. Mas algo no ar tremulou, e um sussurro

foi audível atrás de mim. Prossegui sem olhar para trás.



“Francisco” … “Francisco” … Parei gelado e lentamente

voltei-me a este chamamento.No meio do caminho estava

ela, a mulher do sapateiro. Irradiava uma luz fosforescente.

Tinha os traços rejuvenescidos, figura de rapariga

bela, atraente, sedutora. Estendia-me as mãos – “Francisco”.



Aproximei-me da visão, sem dar conta de que o fazia.

“Sim, estes são os mesmos olhos do santo. Os olhos dele mesmo.”

Os meus braços descontrolados voaram para

a enlaçar. Mas quando a puxei para mim ela desfez-se,

e despertei suado e chorando na imensa cama vazia.





História sobre o poema

Who is Hans Hoffmann and why does the world esteem him ?



Esta história pôe em cena personagens imaginárias e reais. Os imaginários são uma mulher de idade, luso-descendente, e os seus netos, a quem ela conta uma história passada consigo. Ela exprime-se em português, com uns anglicismos à mistura. Os netos não falam mas compreendem o português da avó.

Quanto aos personagens reais, são o artista e professor Hans Hoffman, e um dos seus alunos em Provincetown, o pintor Robert de Niro Snr, e ainda o filho deste, o ator Robert de Niro. Há um outro personagem fictício, o agente português do ator.



- C’mon, grandma, tell us a story. It’s not late yet. Tell us that one about the famous actor’s father.

- Mas eu já vos contei essa história tantas vezes !

- Tell us again.

- Bom, está bem. Mas será em português, que eu com o inglês não me entendo.

- That’s all right, we get it.

- Então cá vai. Isto foi para aí em 1952 ou 1953, no Verão. Nesse tempo eu era uma criança. Tinha sete ou oito anos, como vocês têm agora. A história espantosa que vos vou contar passou-se aqui mesmo, em Provincetown.

“Nessa altura havia mais de nós, portugueses, na cidade. Certas ruas só tinham portugueses, nem um americano, nem um inglês, nada. Nem mesmo italianos ou irlandeses. Eu vivia numa rua assim. Tudo gente da nossa. Os mais velhos quase não diziam uma palavra de inglês. Em casa só falávamos português. Na escola aprendi inglês, mas como desisti passados poucos anos e depois me casei muito nova com o vosso grandpa António, acabei por esquecer. Nunca me fez grande falta o inglês. Fiz muito bem a minha vida, rodeada de portugueses.“

- Can you skip that, please, grandma ? We know it by heart.

- E também sabem o resto, seus marotos. Mas como eu estava a dizer, foi há cerca de uns sessenta anos que esta história começou. Na minha rua havia a família Santos. Eles viviam bem, num apartamento, e alugavam outro que também tinham.

“Houve um Verão, o tal de 1952 ou 1953, em que o alugaram a um homem estranho. Estranho não, era só diferente de nós. Era estrangeiro, vestia-se de uma maneira funny, e tinha um sotaque muito carregado. Passava os dias metido no apartamento a pintar quadros. Chamava-se Ofma, ou Ofman, não sei bem.

“Além de pintar também dava aulas de pintura. Tinha sempre alunos e alunas, mais novos, a pintar com ele, a ver como ele fazia. Eu ia lá vê-los a pintar, deixavam-me entrar. Às vezes punham-me um pincel na mão e guiavam-na sobre o canvas.

“Um desses alunos era um rapaz moreno, o Roberto. Muito miudinho, fartava-se de fazer estudos antes de pintar um quadro. Eu chegava a ter pena dele. Um dia perguntou-me se eu queria que me fizesse o retrato. Pode ser, disse-lhe eu.

“Bem, não queiram saber no que me fui meter. Foram dias e dias de posing, como ele dizia – horas parada, em pé, sem me poder mexer. Às vezes tinha comichão e queria coçar-me, mas ele gritava logo ‘STILL !’ e eu tinha que aguentar, muito quietinha.

“No fim – após mais de uma semana de posing – ele disse que estava acabado e olhei para o quadro. Um horror, uma mistela de manchas de várias cores. Fiquei com a testa verde e o nariz azul, o cabelo vermelho quando o tinha castanho … não se aproveitava nada. Dez dias de tortura para dar naquilo. Nem sequer estava parecida.

- And then ?

- O Roberto assinou o retrato e disse-me que eu podia ficar com ele. Pensei em recusar, mas depois achei que com tanto sacrifício da minha parte mais valia conservá-lo. Arrumei-o num armário e lá ficou muitos anos.

- How many years ?

- Oh, mais de trinta. Foi em 1985 que aconteceu a segunda coisa fantastic.

- What was that ?

- Foi no fim do Verão desse ano, em Setembro. Eu vinha do grocer, tinha ido comprar ingredientes para fazer um bolo – ainda me lembro – e nisto passa por mim um carro, muito devagarinho. Era um carro preto, grande, muito brilhante, e quase não fazia barulho. O carro parou um pouco adiante e saiu dele um senhor muito bem vestido, com uns óculos escuros, e mais um outro senhor moreno.

- What was his name – the well-dressed one’s ?

- Esperem, já vai. Bem, o senhor moreno falou para mim, em português. Disse-me que era o agent do outro senhor, que andavam à procura duma coisa, e perguntou-me o nome. Dei-lhe o meu nome e ele quis saber se um certo artista tinha feito o meu retrato, muitos anos antes.

“Já me tinha quase esquecido do caso, mas depois lembrei-me daquela rubbish que o Roberto tinha pintado de mim. Convidei-os a entrar e fui procurar o quadro. Ainda estava no mesmo armário ! Voltei à sala e desembrulhei-o. Quando o viu, o senhor bem vestido chorou, mas tentou disfarçar, limpando com o lenço. Fiquei espantada, sem perceber porque é que se emocionava assim.

- And then what did he do ?

- Perguntou-me se podia ficar com o retrato. Pagando, é claro.

- What did you tell him, grandma ?

- Estive quase para dizer que podia ficar com ele for free, que até me fazia um favor se o levasse. Mas em vez disso respondi que sim, que lho vendia pelo preço que ele quisesse pagar. Aí o senhor agradeceu-me muito e beijou-me as mãos. Era um homem muito good looking, e se eu não fosse casada não sei não.

- You’re naughty, grandma.

- Qualquer uma seria. Bom, o senhor agradeceu, como eu disse, e saiu. Foi-se meter no carro.

- And the other guy ?

- O outro senhor, o agent, passou-me um cheque.

- How much ?

- Um milhão de dólares ! Caí das nuvens, não queria acreditar. Tanto dinheiro por uma pintura. Fiquei parada, com o papelinho do cheque na mão, sem entender. O agent voltou a embrulhar o quadro e preparou-se para sair.

- What did you do, grandma ?

- Perguntei-lhe quem era o senhor bem vestido.

- What did he say ?

- Baixou a voz e disse que era o ator Robert de Niro, e que o pintor do quadro era o pai dele, que também se chamava Robert. O mesmo Roberto que me obrigou a fazer o posing !

- And you ?

- Fiquei paralisada de espanto. O Robert de Niro, um dos atores meus preferidos, tinha estado em minha casa, falado comigo, tinha-me beijado a mão ! O meu retrato tinha sido pintado pelo pai dele ! Isto era tudo too much, não me conseguia convencer que tinha acontecido. Pensando bem, o tal retrato não era assim tão bad ! Podia não estar muito parecido, mas às vezes vemos uma amiga na rua e não a reconhecemos logo, não é ? E aquelas cores, aqueles azuis e vermelhos – ora, temos é que manter o espírito aberto, evoluir, right ?


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