domingo, 18 de março de 2012

Tradução Frank X. Gaspar e Comentário Criativo


Último Hino à Noite
                                                                                  melancolia divinal
- Milton

Que a casa durma
Que a cidade continue as suas repercussões inquietas,
Que as doninhas citadinas arruínem os frutos dos meus limoeiros,
Que o caminho para a minha garagem
reflita as rochas vulcânicas da lua.
Que os mortos falem de uma forma que eu compreenda
e que eu escute.
Que eu seja forte
agora que os fracos dormem e se salvam a si próprios,
pois tal como tu, caminho para além
do amor e da esperança.
Acho que sabes o que quero dizer:
Que haja café, escuro e simples
na caneca azul abandonada sobre a secretária de múltiplos anéis,
ou com o whisky puro no copo de vidro entre
os livros atravancados e as pilhas de papéis,
e os longos e perigosos lápis, e a máquina
de escrever.
Que a relva aparada suspire por entre o trilho dos caracóis,
Que o gato dos vizinhos ecoe no telhado, que
o candeeiro arda na minha janela em jeito de aviso amarelo
que, por vezes
vou deixar escapar através de uma fresta na porta
enquanto me curvo nas sombras e amarro números às estrelas
no céu arrebatado que cobre a cidade.
Que eu me esqueça que vai chegar uma altura para o meu silêncio:
            Que eu apenas me relembre como são as jacarandás
Cobertas pelo nevoeiro noturno, o brilho de sódio
da iluminação da rua a tocar os seus galhos com auréolas, que
os aquecedores arranquem com a sua batida serena,
que o tamborilar longínquo do frigorifico
cesse subitamente e nos mergulhe no mundo divinatório:
Que eu me transforme, qual moinho a dar à mó, e que imite
os pequenos suspiros de enlevo e coragem,
enquanto me afasto da poeira e aversão do dia,
que eu alcance
a linguagem vacilante do quarto e encontre uma batida de coração,
que eu preencha a ardósia negra do bairro
com hastes,
Que a noite espalhe sons em toda a parte.
Acho que sabes o que quero dizer:
Que os melros chilreiem loucura pelas chaminés.
Que os cães distantes se lamentem como postes ao vento.
Que o jasmim floresça.



As Primeiras Revelações


Para começar, o sopro, para dentro e para fora, um mundo a entrar
noutro mundo e a deixá-lo novamente, o cordão de ouro ou
o cordão de prata – não me recordo qual, mas é algo
assim – algo que nos faça continuar em frente mesmo quando
comemos pão rançoso e não conseguimos encontrar um livro que nos caiba nas mãos
certa noite. É insano, este dedilhar nervoso nas teclas,
tentando criar algo e, no fundo, as palavras não passam
afinal de varas ou setas e os poemas querem cravar-se
no coração de alguém apesar do caos que lá está, ou apertar
a alma de alguém contra o tutano de uma árvore para podermos, por fim,
dizer “alma” sem deixar todos nervosos. Esta chuva ultimamente.
Esta melancolia e a ilustre flagelação das telhas, o chicotear
das calhas. Fui ao quartel dos bombeiros buscar sacos de areia e ainda assim
a água surgiu, negra e fraca e com cheiro a gipso. Não é tão mau
como disseram, mas anjos negros de novo, sentados no meu peito, tão revigorantes,
mesmo quando me arrastaram para baixo. Nunca se vão embora. Sentem-se
em casa. Temos que dizer uma coisa quando queremos dizer outra,
sempre, senão não nos respeitam e eles são perigosos. Isto sou eu
em Janeiro, a varrer a água da garagem, a abrir as portas
e janelas para fazer corrente de ar, a deixar as coisas enxugarem. No jardim,
galhos caídos, baldes de folhas ensopadas. No oceano, a corrente
morna de novo, 16 graus, surfar, quatro metros em algumas das rebentações
a norte, e os jovens e os fortes nos seus jipes lamacentos, as suas
pranchas e fatos de mergulho, a caminho daquele êxtase mais profundo. Bem,
todos vão para algum lado e nenhum dos caminhos é longo.
Eu, eu encaminho-me para dentro para ler sobre o regente da terra e do céu,
As Primeiras Revelações. Amantes em oração constante, por exemplo. Podemos
ler isto o dia todo enquanto os raios e os trovões ribombam e depois

outro dilúvio como pregos a bater nas paredes. Palavras familiares numa
ordem surpreendente, simples e irreconhecível. Ou o espanto vocálico
das Suras, que estão sempre fora do meu alcance. As imagens
de água, a filigrana do oásis, o poço, paraíso numa terra seca,
Alá o Misericordioso, ininteligível, que não foi concebido e
que não concebe. Mistérios para os desesperados e confinados em casa.
Tijolos em combustão. O dilúvio, indiferente e implacável. A
muralha de escuridão invernal. Quase conseguimos ouvir os céus a abrir-se.



Caos
Sento-me à secretária. Ao meu lado, a caneca azul deixa escapar o cheirinho a café acabado de fazer. Dedilho as teclas da máquina de escrever. Os meus dedos sentem-se impacientes, querem passar para a folha tudo o que me vai na cabeça. Mas as ideias são muitas e enroscam-se umas nas outras a uma velocidade tal que não tenho tempo de dactilografar seja o que for.
Largo um pequeno suspiro de desânimo e desconforto enquanto olho à minha volta numa tentativa de organizar os pensamentos. O caos domina todo o quarto. O chão está repleto de livros que desarrumei e nunca tive a paciência de voltar a arrumar… Alguns deles ainda se encontram abertos nas páginas que consultei pela última vez. Ao lado da poltrona descansa um copo de vidro com restos de whisky, quase soterrado por uma das diversas pilhas de papéis. Há quanto tempo ali estará?
Fecho os olhos e concentro-me no silêncio que percorre a casa. Sinto as ideias a querer transbordar da minha imaginação. É como se um mundo quisesse entrar noutro, apenas por breves instantes, para depois o tornar a abandonar… Como se a fantasia quisesse caminhar a par com a realidade o tempo suficiente para deixar a sua marca numa folha de papel.
A chuva bate ruidosamente na minha janela. Lá fora avizinha-se uma noite de temporal, decerto os raios e a trovoada, que nos tomam de dentro para fora, não tardarão a dar sinal, acompanhados pelo ruído surdo dos gatos que caminham no telhado, coberto pelo reflexo das rochas vulcânicas da lua. O céu arrebatado que cobre a cidade turva-me as recordações e impede-me de relembrar o que um dia foi a realidade e o que agora me urge ser distante.
 Oiço na minha cabeça o som longínquo de uma onda. Uma perturbação oscilante que me leva para além do vento que insiste em ir ao encontro da janela do meu quarto. Contenho contradições e adivinho-me cansado. Quero escutar a demência do dia no chilrear dos melros. Sentir o cheiro de jasmim num final de tarde soalheiro, quando as ruas começam a acordar, com o seu brilho incandescente, para a noite que se aproxima.  
Sinto-me melancólico. Aguardo pela alvorada do amanhecer. Chove.

Trabalho por:
Andreia Caeiro
Sara Cunha


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