Último Hino à Noite
melancolia divinal
- Milton
Que
a casa durma
Que a cidade continue as suas
repercussões inquietas,
Que
as doninhas citadinas arruínem os frutos dos meus limoeiros,
Que
o caminho para a minha garagem
reflita
as rochas vulcânicas da lua.
Que
os mortos falem de uma forma que eu compreenda
e que eu escute.
Que
eu seja forte
agora
que os fracos dormem e se salvam a si próprios,
pois tal como tu, caminho para além
do
amor e da esperança.
Acho
que sabes o que quero dizer:
Que haja café, escuro e simples
na
caneca azul abandonada sobre a secretária de múltiplos anéis,
ou
com o whisky puro no copo de vidro entre
os livros atravancados e as pilhas de
papéis,
e
os longos e perigosos lápis, e a máquina
de
escrever.
Que a relva aparada suspire por entre o trilho
dos caracóis,
Que
o gato dos vizinhos ecoe no telhado, que
o
candeeiro arda na minha janela em jeito de aviso amarelo
que, por vezes
vou
deixar escapar através de uma fresta na porta
enquanto me curvo nas sombras e amarro
números às estrelas
no
céu arrebatado que cobre a cidade.
Que eu me esqueça que vai chegar uma
altura para o meu silêncio:
Que
eu apenas me relembre como são as jacarandás
Cobertas
pelo nevoeiro noturno, o brilho de sódio
da iluminação da rua a tocar os seus galhos
com auréolas, que
os
aquecedores arranquem com a sua batida serena,
que
o tamborilar longínquo do frigorifico
cesse
subitamente e nos mergulhe no mundo divinatório:
Que
eu me transforme, qual moinho a dar à mó, e que imite
os
pequenos suspiros de enlevo e coragem,
enquanto
me afasto da poeira e aversão do dia,
que
eu alcance
a
linguagem vacilante do quarto e encontre uma batida de coração,
que eu preencha a ardósia negra do
bairro
com
hastes,
Acho que sabes o que
quero dizer:
Que os melros chilreiem loucura pelas
chaminés.
Que
os cães distantes se lamentem como postes ao vento.
Que o jasmim floresça.
As Primeiras Revelações
Para começar, o sopro, para
dentro e para fora, um mundo a entrar
noutro mundo e a deixá-lo
novamente, o cordão de ouro ou
o cordão de prata – não me
recordo qual, mas é algo
assim – algo que nos faça
continuar em frente mesmo quando
comemos pão rançoso e não
conseguimos encontrar um livro que nos caiba nas mãos
certa noite. É insano, este dedilhar
nervoso nas teclas,
tentando criar algo e, no
fundo, as palavras não passam
afinal de varas ou setas e
os poemas querem cravar-se
no coração de alguém apesar
do caos que lá está, ou apertar
a alma de alguém contra o
tutano de uma árvore para podermos, por fim,
dizer “alma” sem deixar
todos nervosos. Esta chuva ultimamente.
Esta melancolia e a ilustre
flagelação das telhas, o chicotear
das calhas. Fui ao quartel
dos bombeiros buscar sacos de areia e ainda assim
a água surgiu, negra e fraca
e com cheiro a gipso. Não
é tão mau
como disseram, mas anjos negros de novo, sentados no meu
peito, tão revigorantes,
mesmo quando me arrastaram
para baixo. Nunca se vão embora. Sentem-se
em casa. Temos que dizer uma
coisa quando queremos dizer outra,
sempre, senão não nos
respeitam e eles são perigosos. Isto sou eu
em Janeiro, a varrer a água
da garagem, a abrir as portas
e janelas para fazer
corrente de ar, a deixar as coisas enxugarem. No jardim,
galhos caídos, baldes de
folhas ensopadas. No oceano, a corrente
morna de novo, 16 graus,
surfar, quatro metros em algumas das rebentações
a norte, e os jovens e os
fortes nos seus jipes lamacentos, as suas
pranchas e fatos de
mergulho, a caminho daquele êxtase mais profundo. Bem,
todos vão para algum lado e nenhum dos caminhos é
longo.
Eu, eu encaminho-me para
dentro para ler sobre o regente da terra e do céu,
As
Primeiras Revelações. Amantes em oração constante,
por exemplo. Podemos
ler isto o dia todo enquanto
os raios e os trovões ribombam e depois
outro dilúvio como pregos a
bater nas paredes. Palavras familiares numa
ordem surpreendente, simples
e irreconhecível. Ou o espanto vocálico
das Suras, que estão sempre
fora do meu alcance. As imagens
de água, a filigrana do
oásis, o poço, paraíso numa terra seca,
Alá o Misericordioso, ininteligível,
que não foi concebido e
que não concebe. Mistérios para
os desesperados e confinados em casa.
Tijolos em combustão. O dilúvio,
indiferente e implacável. A
muralha de escuridão
invernal. Quase conseguimos ouvir os céus a abrir-se.
Caos
Sento-me à secretária. Ao
meu lado, a caneca azul deixa escapar o cheirinho a café acabado de fazer.
Dedilho as teclas da máquina de escrever. Os meus dedos sentem-se impacientes,
querem passar para a folha tudo o que me vai na cabeça. Mas as ideias são muitas
e enroscam-se umas nas outras a uma velocidade tal que não tenho tempo de
dactilografar seja o que for.
Largo um pequeno suspiro
de desânimo e desconforto enquanto olho à minha volta numa tentativa de
organizar os pensamentos. O caos domina todo o quarto. O chão está repleto de
livros que desarrumei e nunca tive a paciência de voltar a arrumar… Alguns
deles ainda se encontram abertos nas páginas que consultei pela última vez. Ao
lado da poltrona descansa um copo de vidro com restos de whisky, quase soterrado
por uma das diversas pilhas de papéis. Há quanto tempo ali estará?
Fecho os olhos e
concentro-me no silêncio que percorre a casa. Sinto as ideias a querer
transbordar da minha imaginação. É como se um mundo quisesse entrar noutro,
apenas por breves instantes, para depois o tornar a abandonar… Como se a
fantasia quisesse caminhar a par com a realidade o tempo suficiente para deixar
a sua marca numa folha de papel.
A chuva bate ruidosamente
na minha janela. Lá fora avizinha-se uma noite de temporal, decerto os raios e
a trovoada, que nos tomam de dentro para fora, não tardarão a dar sinal,
acompanhados pelo ruído surdo dos gatos que caminham no telhado, coberto pelo
reflexo das rochas vulcânicas da lua. O céu arrebatado que cobre a cidade
turva-me as recordações e impede-me de relembrar o que um dia foi a realidade e
o que agora me urge ser distante.
Oiço na minha cabeça o som longínquo de uma
onda. Uma perturbação oscilante que me leva para além do vento que insiste em
ir ao encontro da janela do meu quarto. Contenho contradições e adivinho-me
cansado. Quero escutar a demência do dia no chilrear dos melros. Sentir o
cheiro de jasmim num final de tarde soalheiro, quando as ruas começam a
acordar, com o seu brilho incandescente, para a noite que se aproxima.
Sinto-me melancólico. Aguardo
pela alvorada do amanhecer. Chove.
Trabalho por:
Andreia Caeiro
Sara Cunha
Trabalho por:
Andreia Caeiro
Sara Cunha
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