Relatório
da tradução de
Walk
Back, Look Ahead, a Chronicle
Este
ensaio é da autoria do escritor americano, de origem açoriana,
Richard Simas. Nele, a narrativa biográfica (sobre a sua família de
ascendência açoriana) e autobiográfica, convive com o discurso
reflexivo sobre a experiência e o sentimento do autor em relação à
língua, literatura e cultura portuguesas (sobretudo dos Açores),
sobre a sua identidade enquanto “escritor disperso” e “imigrante
cultural” (termos pelos quais se define), mas também sobre as
noções de identidade (cultural, étnica, nacional) e miscigenação.
Apesar
de no início a linguagem ser mais coloquial, podemos identificar
como característica que percorre todo o texto o uso de uma linguagem
cuidada e de registo predominantemente literário, optando o autor
muitas vezes por usar termos e expressões próprias deste registo em
detrimento de outras de um registo mais neutro ou coloquial, por
exemplo: «I
would hope
to say», em vez de «I would like to say» (pág. 1); «nor
did he attempt
to teach me», em vez de “try”(pág. 2); «my grandfather’s
first voyage»,
em vez de “trip”(pág. 3); «It occurred»,
em vez de “it took place” (pág. 3); «wildest dreamings»,
em vez de “wildest dreams”(pág. 3).
Contudo,
é importante considerar este ensaio (pelo menos a parte que foi por
mim traduzida) como estando dividida em três momentos, entre os
quais há uma progressão desde uma linguagem e expressividade mais
coloquial para uma mais poética.
Na
introdução temos a presença de várias expressões e formas de
dizer próprias da coloquialidade, sendo que as frases se alongam
para lá do momento em que se esperaria uma pausa, transmitindo um
ritmo e uma fluência próprias da oralidade: «I
am not an academic, a publisher, or a translator, however if
anything, I am a “scattered writer,” and having landed here on
this island, I assume that I am approximately in the right place»,
«Fellini was Italian, still what he says is so true and there is the
question of his choice of fish, the cod», «I
would hope to say something useful here about your subject of
Escritas
Dispersas, Convergência de Afectos,
but I warn you that it will still be about me, or someone who is like
me and is writing this text.» (pág. 1). Este registo permanece no
primeiro parágrafo do primeiro capítulo: «People told me that it
was a crazy thing to do», «Now I am learning an old language,
Portuguese, also a choice and something more, but not that crazy
either» (pág. 2). Na última frase, anuncia-se já aparecimento do
registo mais poético que caracteriza a parte final do excerto
traduzido: «I am walking back to discover the steps left behind me
or I am moving forward to discover where they will lead» (pág. 2).
O registo coloquial dominante no início do ensaio justifica-se,
julgo, por o autor se dirigir aqui diretamente a uma audiência,
procurando, intencionalmente, escrever como se fala.
Nos
três parágrafos seguintes, em que o autor nos fala da família de
seu pai, sob a forma de narrativa, a
linguagem e as formulações aproximam-se, julgo eu, de um registo de
prosa mais convencional , sem se inclinar para a coloquialidade, por
um lado, ou para o artifício poético, por outro. Mas também neste
momento aparecem algumas formulações de expressão mais poética,
por exmplo: «a woman whose name contained the word and notion of his
own presence, Conceição» (pág. 3).
Num
terceiro momento, quando o autor reflete sobre os temas referidos
acima referidos, e passa depois a contar-nos como descobriu a cultura
e literatura açoriana, o registo da linguagem eleva-se, o discurso
tornasse mais artificioso e próximo da prosa poética, construindo o
autor várias imagens e metáforas originais para expressar as suas
ideias: «I am searching for the ancestral roots of my words» (pág.
4); «I want to know who was born from those words, how they lived
and where» (pág. 4); «another wandering soul shoves off from an
(I)-land into dark waters, drifting away in a small boat with a
bundle of possessions and a tense heart » (pág. 5).
Outra
característica desta parte do ensaio é o uso de frases curtas, com
as quais o autor acentua e destaca certas ideias, e que contribuem
para a criação uma forma de expressão concisa que se distancia da
forma de dizer comum, constituindo-se como um elemento da linguagem
literária própria do autor. Por vezes o mesmo efeito é criado
sobre palavras e expressões simples, que aparecem entre pontos
finais sem que constituam uma frase, por exemplo: «...or
I am moving forward to discover where they will lead. Of
course, both»
(pág. 2); «...similar to so many other stories. Still.
My interest...» (pág. 4); «Not bones, but the sounds and souls»
(pág. 4); «I am absolutely nothing other than them. Us.
Dust, codfish, scattered islands»
(pág. 4).
Analisado
o texto, começo agora por falar do modo como tratei as expressões
em português no texto de partida. Não achei importante dar a
entender, de algum modo, que a citação inicial, o «movimento» e a
«impureza» que dão nome aos sub-capítulos, ou a «viola da
terra» da página 3 estão escritos em português no original, pelo
que me limitei a trocar o itálico pela grafia normal. Tal
conhecimento é importante em «cala
a boca, cala a boca, tu não sabes falar»
(pág. 2) e «to open a
boca calada»
(pág.3), mas no primeiro caso há uma referência direta no texto de
que se trata da citação de uma frase em português, pelo que me
limitei a trocar o itálico pelas aspas; no segundo caso, a mesma
troca também torna explicito que se está a fazer referência à
frase antes referida.
Consideremos,
agora, algumas dificuldades de tradução e a justificação das
escolhas tomadas.
No
primeiro parágrafo pareceu-me uma solução demasiado simplista
traduzir literalmente «I am relatively new» por «Sou relativamente
novo». «Sou ainda novo» ou «sou ainda principiante» pareceram-me
soluções que se adequavam mais ao modo de falar português, mas
perdia-se a ideia dita por «relativamente», de que «ainda» de
aproxima mas da qual não é um equivalente perfeito. Preferi, por
isso traduzir por «sou relativamente inexperiente», sendo que este
adjetivo indica que ainda não se lidou muito tempo, ou
profundamente, com questão referida , que se está agora a começar.
Julgo que é esse também o sentido de texto de partida.
No
mesmo parágrafo diz-se: «I
have written about different things in various media, one of which
was an essay on Azorean marching bands, Espírito
Santo,
and immigration». Parece-me que o autor não quer dizer que
escreveu sobre o próprio «Espírito Santo» (pelo contexto se
percebe que não se trata de preocupações teológicas), mas sobre
algum tipo de celebração deste, que seja popular nos Açores. As
«festas do Espírito Santo» são, de facto, uma celebração
popular no arquipélago. Pareceu-me, por isso, importante corrigir o
texto de partida, acrescentando as «festas do» ao «Espírito
Santo».
Consideremos
agora a expressão que surge no final deste parágrafo: «that has
its problems, but as such, I am for once totally qualified to be
where I am». A minha primeira dificuldade aqui foi determinar que
termo poderia traduzir aqui adequadamente «for once», pois «desta
vez», ou «pelo menos esta vez», que são as traduções mais
habituais, apesar de fazerem aqui sentido, não pareciam dar um tom
natural à frase portuguesa. À
falta de um equivalente perfeito, pensei que o mais importante seria
transmitir a ideia de “circunstância exclusiva” que a expressão
da língua de partida transmite, de que a condição antes referida,
apesar de ser problemática, “neste caso (em particular)”
torna-me «totally qualified to be where I am». Preferi omitir, na
tradução, a expressão «as such» (que seria aqui “deste modo”)
pois achei que tornava a frase demasiado pesada e pouco fluida, sendo
que não acrescenta significado ao texto de partida, mas tem mero
valor enfático. Preferi transformar o «I
am
for once...» em «torna-me», para evitar a repetição do “estou”
com o «estar onde estou» que se lhe seguiria.
Ao
traduzir a citação de Fellini que aparece no segundo parágrafo –
«Even
if I wanted to make a film about codfish, it would still
be a film about me» – achei melhor traduzir «still» por «sempre»
em vez de usar os termos que traduzem de forma mais direta o termo
inglês, “ainda” ou “ainda assim”. A primeira opção não
faz aqui sentido, e com a segunda o discurso não ficava tão fluido.
Sendo que aquilo que Fellini nos diz é que qualquer filme que
realize será sempre um filme sobre si mesmo, trocar “ainda assim”
por “sempre” não altera o sentido essencial da frase e esta
resulta mais agradável.
O
terceiro parágrafo é a afirmação: «I am a cultural immigrant».
Sendo esta uma afirmação da identidade do autor, que aparece
isolada, querendo o autor, deste modo, acentuar o tom da afirmação,
pareceu-me que a frase ficaria enfraquecida sem começar pelo «Eu»,
dizendo-se simplesmente: «Sou um imigrante cultural».
No
início da segunda página (sexta linha), aparece a expressão: «in
the exquisite blur of hindsight», a qual é de difícil
interpretação, prestando-se a várias alternativas. «Hindsight»
não levanta problemas, pois só pode, aqui, ter o sentido de
“visão/imagem retrospetiva, a
posteriori,
sobre os/dos factos”. «Blur» pode significar “nódoa, mancha,
névoa”, ou “uma imagem turva, obscura, confusa, seja visual ou
mental”. «Blur» parece aqui qualificar o modo como aparece a
“visão/imagem retrospetiva”, dizendo que ela é turva. Mais
problemática é a tradução de «exquisite». Entre as
interpretações possíveis, pareceu-me mais correto considerar este
adjetivo como qualificando, tal como «blur», a visão retrospetiva,
na medida em que ele é usado para qualificar uma perceção,
sensação ou qualidade percetiva como sendo “intensa, aguda,
apurada, penetrante”. Constitui-se, assim, uma imagem que concilia
termos com sentidos quase opostos, em que uma “visão retrospetiva”
se faz “penetrante apesar de turva”.
Não
consegui encontrar um termo que traduzisse «sharecropper farm» (pág
2, 2º par.), apenas para aquele que pratica “sharecropping”, o
“sharecropper”, que em português se diz “meeiro”. O discurso
resultante saiu pouco fluido, mas de todas as soluções que
experimentei foi a que me pareceu mais económica e fluida. Contudo,
esta formulação parece ter o inconveniente de, para a pessoa que
não conhece o sentido do termo «meeiros», este poder ser
compreendido como designando o tipo de trabalho exercido na quinta e
não o estatuto contratual daquele que explora o terreno. Pensei
mudar o termo «meeiros» por «rendeiros», por ser este um termo
mais familiar ao leitor português e referir uma realidade
semelhante. Contudo, pareceu-me que, neste caso, uma pequena troca
deste tipo, seria demasiado infiel ao texto de partida, pois não se
teria a referir um fenómeno específico e marcante da realidade
rural americana da época que é aqui descrita (o sistema de
exploração da terra em sharecropping).
No
mesmo parágrafo, a expressão «Roaring Twenties» foi traduzida por
«Estrondosos Anos 20». Preferi esta tradução à mais habitual,
«Loucos Anos 20», porque logo a seguir o autor joga com esta
expressão dizendo: «Though there was nothing “roaring” about
their small enterprise...». “Estrondoso” está até mais próximo
do sentido de “roaring”, sendo que, julgo eu, não deixa de ser
explicito que há uma relação entre esta expressão e a habitual
«Loucos Anos 20», que ambas designam o mesmo fenómeno,
transmitindo uma mesma imagem dos anos 20. Por outro lado,
“estrondoso” adequa-se ao contexto da sua segunda ocorrência de
“roaring”, sendo este um uso comum do termo.
Ainda
neste parágrafo, ao traduzir «you won’t find us standing in a
welfare line», foi necessário traduzir o «you», e não dizer
somente «não
nos verás na fila da segurança social», pois logo a seguir diz-se:
«The
“us” was the essential word in his statement” »,
fazendo-se referência ao primeiro «us».
No
fim do segundo parágrafo da página três, em que o autor relata a
viagem de seu avô, ainda na barriga de sua mãe, da ilha do Pico até
à Califórnia, o autor refere-se à última fase da viagem, após a
travessia do Oceano Atlântico, como sendo «across
frontier
North America». Não tenho a certeza se compreendi corretamente esta
noção. Será uma referência à indeterminação dos limites
fronteiriços e à expansão territorial, nomeadamente, neste caso, a
expansão para oeste, por que passaram os Estados Unidos desde a
independência até meados dos século XIX, o que significaria a
travessia de fronteiras dentro do continente? (Pelo que pude
entender, por algumas leituras que fiz, no período a que se refere a
história narrada pelo autor, o território americano já estava
completamente expandido até ao Pacífico). Ou quererá o autor
dizer, simplesmente, que o seu avô entrou, então no território
Americano, passando a sua fronteira? Não tendo a certeza do que está
aqui a ser dito, julgo que a minha tradução, correndo o risco de
ser infiel às palavras do texto, não o é ao espírito do relato e
ao tom de aventura que é transmitido, expressando a ideia da longa e
turbulenta viagem até chegar à Califórnia.
Na
tradução da frase «[I want to] stoop
through
the low doorways of their old homes», que aparece no segundo
parágrafo da página quatro, a tradução do phrasal
verb
sublinhado é problemática, porque não é possível transmitir em
português a mesma ideia com a mesma concisão. Optei por traduzir
«atravessar as portas baixas...» omitindo a referência ao ato de
“curvar-se”, pois pareceu-me que este ficaria subentendido, e que
a expressão “curvado atravessar” ficava aqui pesada e tirava
fluência ao texto.
Logo
a seguir diz-se. «My own name means very little in comparison». “To
mean very little” significa “ter muito pouca importância”.
Contudo, como o que tem aqui pouca importância é «my own name»,
parece-me que o autor tira, aqui, partido do sentido de “to mean”
como sendo “significar”. Daí ter optado por traduzir «means
very little» por «tem muito pouco significado», usando uma forma
menos usual de dizer “ter muito pouca importância”, para
transmitir o duplo sentido expresso no texto de partida.
Na
frase «I want to eat
a meal
with the family of my own words», que aparece no primeiro parágrafo
da página quatro, preferi traduzir a expressão sublinhada por
«almoçar», em vez da tradução mais literal «comer uma
refeição», por que achei que soava mais natural, de registo mais
elevado, e tornava o discurso mais fluido, sem sacrificar o sentido
essencial da frase. «Quero comer com a família...» é uma
alternativa que mantem a fluência, mas o seu registo, mais familiar,
choca com o registo global do texto e com o tom poético da frase.
No
parágrafo seguinte aparece a frase: «sometimes the story grows
so faint I fear that it will become
inaudible». O facto de ambos os verbos sublinhados serem comummente
traduzidos pelo mesmo verbo, aquele que usei para traduzir o
primeiro, “tornar(-se)”, obrigou-me a procurar um outro verbo que
pudesse ser aqui usado com o mesmo sentido. Lembrei-me que o verbo
“fazer” na sua forma reflexa é, por vezes, usado com o sentido
do verbo “tornar” na mesma forma. Esta solução revelou-se,
julgo eu, feliz porque eleva o tom do discurso da tradução, uma vez
que “fazer-se” pertence a um registo mais elevado que
“tornar-se”. Aparece, por exemplo, na Bíblia dos Capuchinhos nas
seguintes passagens: Jo 1, 14, «E o Verbo fez-se homem e veio
habitar connosco»; Dn 14, 28 «O rei fez-se judeu!»; Gn 25, 27
«Esaú fez-se hábil caçador».
Na
frase que aparece no parágrafo seguinte, «Its
endless reconfigurations and variations sing to me a music towards
which I
am helpless to resist
moving»,
a parte sublinhada foi traduzida «me acho incapaz de resistir» em
vez de uma tradução mais literal «sou incapaz de resistir». Esta
solução eleva o tom da frase, pois o seu registo é mais poético
que a alternativa, de registo mais neutro, reforçando, ainda, a
ideia de impotência que é transmitida.
Quanto
à tradução de «drifting away», penso que este phrasal
verb poderia
ser aqui traduzido de dois modos: “afastando-se” e “levada”.
Tive que considerar as duas alternativas, e julgo que ambas têm
pontos contra e a favor. Logo à partida deve-se notar que “drifting
away” concilia a imagem do “afastar-se” ativo e do “ser
levado” passivo. A primeira alternativa tem a vantagem de não
excluir a hipótese de este “afastar-se” se dever a forças
exteriores, apesar de tal não ser sugerido com a mesma força com
que o faz a expressão inglesa. Já a segunda alternativa de tradução
exclui por completo o papel ativo do sujeito. “Levada” tem,
contudo, a vantagem de ter, neste contexto, um registo mais poético
pois, como “drifting away”, transmite a ideia de flutuação e
movimento sobre e pelas águas, aparecendo em imagens como “ser
levado pelas águas/pela corrente”. Por isso, apesar da componente
passiva do verbo de partida resultar, talvez, excessivamente
acentuada, e a componente ativa excluída, preferi esta alternativa
de tradução.
Por
último, quero fazer aqui referência ao que me parece ser um erro
ortográfico no texto. Na seguinte frase, «How
do you accept the essential momentum of life itself, history, and its
natural resistance to purity, its imminent
mutations...»,
presente no primeiro parágrafo da página cinco, parece-me que o
termo que faz aqui sentido não é «imminent mutations» mas
“immanent mutations”. Não tendo forma de confirmar tal, para lá
do meu falível discernimento pessoal, preferi traduzir ipsis
verbis.
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