domingo, 18 de março de 2012



Relatório da tradução de Walk Back, Look Ahead, a Chronicle

Este ensaio é da autoria do escritor americano, de origem açoriana, Richard Simas. Nele, a narrativa biográfica (sobre a sua família de ascendência açoriana) e autobiográfica, convive com o discurso reflexivo sobre a experiência e o sentimento do autor em relação à língua, literatura e cultura portuguesas (sobretudo dos Açores), sobre a sua identidade enquanto “escritor disperso” e “imigrante cultural” (termos pelos quais se define), mas também sobre as noções de identidade (cultural, étnica, nacional) e miscigenação.
Apesar de no início a linguagem ser mais coloquial, podemos identificar como característica que percorre todo o texto o uso de uma linguagem cuidada e de registo predominantemente literário, optando o autor muitas vezes por usar termos e expressões próprias deste registo em detrimento de outras de um registo mais neutro ou coloquial, por exemplo: «I would hope to say», em vez de «I would like to say» (pág. 1); «nor did he attempt to teach me», em vez de “try”(pág. 2); «my grandfather’s first voyage», em vez de “trip”(pág. 3); «It occurred», em vez de “it took place” (pág. 3); «wildest dreamings», em vez de “wildest dreams”(pág. 3).
Contudo, é importante considerar este ensaio (pelo menos a parte que foi por mim traduzida) como estando dividida em três momentos, entre os quais há uma progressão desde uma linguagem e expressividade mais coloquial para uma mais poética.
Na introdução temos a presença de várias expressões e formas de dizer próprias da coloquialidade, sendo que as frases se alongam para lá do momento em que se esperaria uma pausa, transmitindo um ritmo e uma fluência próprias da oralidade: «I am not an academic, a publisher, or a translator, however if anything, I am a “scattered writer,” and having landed here on this island, I assume that I am approximately in the right place», «Fellini was Italian, still what he says is so true and there is the question of his choice of fish, the cod», «I would hope to say something useful here about your subject of Escritas Dispersas, Convergência de Afectos, but I warn you that it will still be about me, or someone who is like me and is writing this text.» (pág. 1). Este registo permanece no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: «People told me that it was a crazy thing to do», «Now I am learning an old language, Portuguese, also a choice and something more, but not that crazy either» (pág. 2). Na última frase, anuncia-se já aparecimento do registo mais poético que caracteriza a parte final do excerto traduzido: «I am walking back to discover the steps left behind me or I am moving forward to discover where they will lead» (pág. 2). O registo coloquial dominante no início do ensaio justifica-se, julgo, por o autor se dirigir aqui diretamente a uma audiência, procurando, intencionalmente, escrever como se fala.
Nos três parágrafos seguintes, em que o autor nos fala da família de seu pai, sob a forma de narrativa, a linguagem e as formulações aproximam-se, julgo eu, de um registo de prosa mais convencional , sem se inclinar para a coloquialidade, por um lado, ou para o artifício poético, por outro. Mas também neste momento aparecem algumas formulações de expressão mais poética, por exmplo: «a woman whose name contained the word and notion of his own presence, Conceição» (pág. 3).
Num terceiro momento, quando o autor reflete sobre os temas referidos acima referidos, e passa depois a contar-nos como descobriu a cultura e literatura açoriana, o registo da linguagem eleva-se, o discurso tornasse mais artificioso e próximo da prosa poética, construindo o autor várias imagens e metáforas originais para expressar as suas ideias: «I am searching for the ancestral roots of my words» (pág. 4); «I want to know who was born from those words, how they lived and where» (pág. 4); «another wandering soul shoves off from an (I)-land into dark waters, drifting away in a small boat with a bundle of possessions and a tense heart » (pág. 5).
Outra característica desta parte do ensaio é o uso de frases curtas, com as quais o autor acentua e destaca certas ideias, e que contribuem para a criação uma forma de expressão concisa que se distancia da forma de dizer comum, constituindo-se como um elemento da linguagem literária própria do autor. Por vezes o mesmo efeito é criado sobre palavras e expressões simples, que aparecem entre pontos finais sem que constituam uma frase, por exemplo: «...or I am moving forward to discover where they will lead. Of course, both» (pág. 2); «...similar to so many other stories. Still. My interest...» (pág. 4); «Not bones, but the sounds and souls» (pág. 4); «I am absolutely nothing other than them. Us. Dust, codfish, scattered islands» (pág. 4).
Analisado o texto, começo agora por falar do modo como tratei as expressões em português no texto de partida. Não achei importante dar a entender, de algum modo, que a citação inicial, o «movimento» e a «impureza» que dão nome aos sub-capítulos, ou a «viola da terra» da página 3 estão escritos em português no original, pelo que me limitei a trocar o itálico pela grafia normal. Tal conhecimento é importante em «cala a boca, cala a boca, tu não sabes falar» (pág. 2) e «to open a boca calada» (pág.3), mas no primeiro caso há uma referência direta no texto de que se trata da citação de uma frase em português, pelo que me limitei a trocar o itálico pelas aspas; no segundo caso, a mesma troca também torna explicito que se está a fazer referência à frase antes referida.
Consideremos, agora, algumas dificuldades de tradução e a justificação das escolhas tomadas.
No primeiro parágrafo pareceu-me uma solução demasiado simplista traduzir literalmente «I am relatively new» por «Sou relativamente novo». «Sou ainda novo» ou «sou ainda principiante» pareceram-me soluções que se adequavam mais ao modo de falar português, mas perdia-se a ideia dita por «relativamente», de que «ainda» de aproxima mas da qual não é um equivalente perfeito. Preferi, por isso traduzir por «sou relativamente inexperiente», sendo que este adjetivo indica que ainda não se lidou muito tempo, ou profundamente, com questão referida , que se está agora a começar. Julgo que é esse também o sentido de texto de partida.
No mesmo parágrafo diz-se: «I have written about different things in various media, one of which was an essay on Azorean marching bands, Espírito Santo, and immigration». Parece-me que o autor não quer dizer que escreveu sobre o próprio «Espírito Santo» (pelo contexto se percebe que não se trata de preocupações teológicas), mas sobre algum tipo de celebração deste, que seja popular nos Açores. As «festas do Espírito Santo» são, de facto, uma celebração popular no arquipélago. Pareceu-me, por isso, importante corrigir o texto de partida, acrescentando as «festas do» ao «Espírito Santo».
Consideremos agora a expressão que surge no final deste parágrafo: «that has its problems, but as such, I am for once totally qualified to be where I am». A minha primeira dificuldade aqui foi determinar que termo poderia traduzir aqui adequadamente «for once», pois «desta vez», ou «pelo menos esta vez», que são as traduções mais habituais, apesar de fazerem aqui sentido, não pareciam dar um tom natural à frase portuguesa. À falta de um equivalente perfeito, pensei que o mais importante seria transmitir a ideia de “circunstância exclusiva” que a expressão da língua de partida transmite, de que a condição antes referida, apesar de ser problemática, “neste caso (em particular)” torna-me «totally qualified to be where I am». Preferi omitir, na tradução, a expressão «as such» (que seria aqui “deste modo”) pois achei que tornava a frase demasiado pesada e pouco fluida, sendo que não acrescenta significado ao texto de partida, mas tem mero valor enfático. Preferi transformar o «I am for once...» em «torna-me», para evitar a repetição do “estou” com o «estar onde estou» que se lhe seguiria.
Ao traduzir a citação de Fellini que aparece no segundo parágrafo – «Even if I wanted to make a film about codfish, it would still be a film about me» – achei melhor traduzir «still» por «sempre» em vez de usar os termos que traduzem de forma mais direta o termo inglês, “ainda” ou “ainda assim”. A primeira opção não faz aqui sentido, e com a segunda o discurso não ficava tão fluido. Sendo que aquilo que Fellini nos diz é que qualquer filme que realize será sempre um filme sobre si mesmo, trocar “ainda assim” por “sempre” não altera o sentido essencial da frase e esta resulta mais agradável.
O terceiro parágrafo é a afirmação: «I am a cultural immigrant». Sendo esta uma afirmação da identidade do autor, que aparece isolada, querendo o autor, deste modo, acentuar o tom da afirmação, pareceu-me que a frase ficaria enfraquecida sem começar pelo «Eu», dizendo-se simplesmente: «Sou um imigrante cultural».
No início da segunda página (sexta linha), aparece a expressão: «in the exquisite blur of hindsight», a qual é de difícil interpretação, prestando-se a várias alternativas. «Hindsight» não levanta problemas, pois só pode, aqui, ter o sentido de “visão/imagem retrospetiva, a posteriori, sobre os/dos factos”. «Blur» pode significar “nódoa, mancha, névoa”, ou “uma imagem turva, obscura, confusa, seja visual ou mental”. «Blur» parece aqui qualificar o modo como aparece a “visão/imagem retrospetiva”, dizendo que ela é turva. Mais problemática é a tradução de «exquisite». Entre as interpretações possíveis, pareceu-me mais correto considerar este adjetivo como qualificando, tal como «blur», a visão retrospetiva, na medida em que ele é usado para qualificar uma perceção, sensação ou qualidade percetiva como sendo “intensa, aguda, apurada, penetrante”. Constitui-se, assim, uma imagem que concilia termos com sentidos quase opostos, em que uma “visão retrospetiva” se faz “penetrante apesar de turva”.
Não consegui encontrar um termo que traduzisse «sharecropper farm» (pág 2, 2º par.), apenas para aquele que pratica “sharecropping”, o “sharecropper”, que em português se diz “meeiro”. O discurso resultante saiu pouco fluido, mas de todas as soluções que experimentei foi a que me pareceu mais económica e fluida. Contudo, esta formulação parece ter o inconveniente de, para a pessoa que não conhece o sentido do termo «meeiros», este poder ser compreendido como designando o tipo de trabalho exercido na quinta e não o estatuto contratual daquele que explora o terreno. Pensei mudar o termo «meeiros» por «rendeiros», por ser este um termo mais familiar ao leitor português e referir uma realidade semelhante. Contudo, pareceu-me que, neste caso, uma pequena troca deste tipo, seria demasiado infiel ao texto de partida, pois não se teria a referir um fenómeno específico e marcante da realidade rural americana da época que é aqui descrita (o sistema de exploração da terra em sharecropping).
No mesmo parágrafo, a expressão «Roaring Twenties» foi traduzida por «Estrondosos Anos 20». Preferi esta tradução à mais habitual, «Loucos Anos 20», porque logo a seguir o autor joga com esta expressão dizendo: «Though there was nothing “roaring” about their small enterprise...». “Estrondoso” está até mais próximo do sentido de “roaring”, sendo que, julgo eu, não deixa de ser explicito que há uma relação entre esta expressão e a habitual «Loucos Anos 20», que ambas designam o mesmo fenómeno, transmitindo uma mesma imagem dos anos 20. Por outro lado, “estrondoso” adequa-se ao contexto da sua segunda ocorrência de “roaring”, sendo este um uso comum do termo.
Ainda neste parágrafo, ao traduzir «you won’t find us standing in a welfare line», foi necessário traduzir o «you», e não dizer somente «não nos verás na fila da segurança social», pois logo a seguir diz-se: «The “us” was the essential word in his statement” », fazendo-se referência ao primeiro «us».
No fim do segundo parágrafo da página três, em que o autor relata a viagem de seu avô, ainda na barriga de sua mãe, da ilha do Pico até à Califórnia, o autor refere-se à última fase da viagem, após a travessia do Oceano Atlântico, como sendo «across frontier North America». Não tenho a certeza se compreendi corretamente esta noção. Será uma referência à indeterminação dos limites fronteiriços e à expansão territorial, nomeadamente, neste caso, a expansão para oeste, por que passaram os Estados Unidos desde a independência até meados dos século XIX, o que significaria a travessia de fronteiras dentro do continente? (Pelo que pude entender, por algumas leituras que fiz, no período a que se refere a história narrada pelo autor, o território americano já estava completamente expandido até ao Pacífico). Ou quererá o autor dizer, simplesmente, que o seu avô entrou, então no território Americano, passando a sua fronteira? Não tendo a certeza do que está aqui a ser dito, julgo que a minha tradução, correndo o risco de ser infiel às palavras do texto, não o é ao espírito do relato e ao tom de aventura que é transmitido, expressando a ideia da longa e turbulenta viagem até chegar à Califórnia.
Na tradução da frase «[I want to] stoop through the low doorways of their old homes», que aparece no segundo parágrafo da página quatro, a tradução do phrasal verb sublinhado é problemática, porque não é possível transmitir em português a mesma ideia com a mesma concisão. Optei por traduzir «atravessar as portas baixas...» omitindo a referência ao ato de “curvar-se”, pois pareceu-me que este ficaria subentendido, e que a expressão “curvado atravessar” ficava aqui pesada e tirava fluência ao texto.
Logo a seguir diz-se. «My own name means very little in comparison». “To mean very little” significa “ter muito pouca importância”. Contudo, como o que tem aqui pouca importância é «my own name», parece-me que o autor tira, aqui, partido do sentido de “to mean” como sendo “significar”. Daí ter optado por traduzir «means very little» por «tem muito pouco significado», usando uma forma menos usual de dizer “ter muito pouca importância”, para transmitir o duplo sentido expresso no texto de partida.
Na frase «I want to eat a meal with the family of my own words», que aparece no primeiro parágrafo da página quatro, preferi traduzir a expressão sublinhada por «almoçar», em vez da tradução mais literal «comer uma refeição», por que achei que soava mais natural, de registo mais elevado, e tornava o discurso mais fluido, sem sacrificar o sentido essencial da frase. «Quero comer com a família...» é uma alternativa que mantem a fluência, mas o seu registo, mais familiar, choca com o registo global do texto e com o tom poético da frase.
No parágrafo seguinte aparece a frase: «sometimes the story grows so faint I fear that it will become inaudible». O facto de ambos os verbos sublinhados serem comummente traduzidos pelo mesmo verbo, aquele que usei para traduzir o primeiro, “tornar(-se)”, obrigou-me a procurar um outro verbo que pudesse ser aqui usado com o mesmo sentido. Lembrei-me que o verbo “fazer” na sua forma reflexa é, por vezes, usado com o sentido do verbo “tornar” na mesma forma. Esta solução revelou-se, julgo eu, feliz porque eleva o tom do discurso da tradução, uma vez que “fazer-se” pertence a um registo mais elevado que “tornar-se”. Aparece, por exemplo, na Bíblia dos Capuchinhos nas seguintes passagens: Jo 1, 14, «E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco»; Dn 14, 28 «O rei fez-se judeu!»; Gn 25, 27 «Esaú fez-se hábil caçador».
Na frase que aparece no parágrafo seguinte, «Its endless reconfigurations and variations sing to me a music towards which I am helpless to resist moving», a parte sublinhada foi traduzida «me acho incapaz de resistir» em vez de uma tradução mais literal «sou incapaz de resistir». Esta solução eleva o tom da frase, pois o seu registo é mais poético que a alternativa, de registo mais neutro, reforçando, ainda, a ideia de impotência que é transmitida.
Quanto à tradução de «drifting away», penso que este phrasal verb poderia ser aqui traduzido de dois modos: “afastando-se” e “levada”. Tive que considerar as duas alternativas, e julgo que ambas têm pontos contra e a favor. Logo à partida deve-se notar que “drifting away” concilia a imagem do “afastar-se” ativo e do “ser levado” passivo. A primeira alternativa tem a vantagem de não excluir a hipótese de este “afastar-se” se dever a forças exteriores, apesar de tal não ser sugerido com a mesma força com que o faz a expressão inglesa. Já a segunda alternativa de tradução exclui por completo o papel ativo do sujeito. “Levada” tem, contudo, a vantagem de ter, neste contexto, um registo mais poético pois, como “drifting away”, transmite a ideia de flutuação e movimento sobre e pelas águas, aparecendo em imagens como “ser levado pelas águas/pela corrente”. Por isso, apesar da componente passiva do verbo de partida resultar, talvez, excessivamente acentuada, e a componente ativa excluída, preferi esta alternativa de tradução.
Por último, quero fazer aqui referência ao que me parece ser um erro ortográfico no texto. Na seguinte frase, «How do you accept the essential momentum of life itself, history, and its natural resistance to purity, its imminent mutations...», presente no primeiro parágrafo da página cinco, parece-me que o termo que faz aqui sentido não é «imminent mutations» mas “immanent mutations”. Não tendo forma de confirmar tal, para lá do meu falível discernimento pessoal, preferi traduzir ipsis verbis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário