quarta-feira, 28 de março de 2012
A
partir de Walk
Back, Look Ahead, a Chronicle,
de Richard Simas.
The
struggle to name and define a subject fascinates me.
Muito do que
escrevemos reflecte quem nós somos na realidade. De facto, da nossa
escrita, a partir das linhas e entrelinhas das escolhas que tomamos,
emerge a nossa identidade.
(Alguém canta fado
num clube de Montreal. Num quarto em Lisboa alguém ouve Arcade Fire.
Qual destes mora no estrangeiro, qual destes está em casa. Onde fica
Lisboa, onde fica Montreal).
Segundo
Onésimo Almeida, «a literatura é mais um dos locais onde o
espírito humano deixa transparecer muito do mundo que subjaz aos
seus criadores», pelo que «reflecte de algum modo mais do que
apenas o seu eu». A luta por definir um assunto sempre me fascinou,
tal como definir a Literatura
Açoriana por que
Almeida tanto lutou. Contudo, o que mais me fascina é definir quem
eu sou e, acima de tudo, que mundo deixo eu transparecer quando acabo
de escrever.
Quando se fala de identidade, aquilo que nos liga a uma comunidade e é por isso género em relação ao indivíduo e particular em relação a um Sujeito Universal, a um Ser Humano, quantos de nós pode dizer qual é a sua morada, pode dizer que tem uma morada. O que habitamos hoje em dia são, sobretudo, não-lugares, lugares de trânsito, viajamos entre identidades mais do que repousamos nelas. Ainda que na bagagem levemos sempre lembranças, fotografias, filmes, roupas e canções que nos trazem recordações e nos levam de volta para esses lugares que nos fazem.
A meu ver, sou um escritor disperso, de texto diverso, mas ao chegar a esta ilha sei que estou no sítio certo. Sinto que estou mais perto do passado, pois agora estou mais qualificado para procurar. Entretanto, faço o que sei fazer melhor: exagerar. Para mim, escrever é falar, é falar sobre Escritas Dispersas, sobre Convergência de Afectos, falar sobre mim, sobre línguas e dialectos. É quem eu sou e porque aqui estou.
Escritas dispersas. Que se multiplicam por folhas soltas, por suportes distantes, por vozes diversas. Que são levadas pelo vento e são vento.
Afinal, sou um imigrante cultural. É-me intrínseco o movimento, por isso deixei a solarenga Califórnia pelo frio de Montreal. Aprendi uma nova língua, o francês, e os anos passaram. Agora aprendo uma língua velha, o português, a que me deixaram. Simultaneamente volto atrás para ver os passos que ficaram marcados e olho em frente, caminho para o futuro certamente, para descobrir aonde irei. Finalmente encontrei a minha boca calada e agora irei tentar, irei fazer com que esta se abra.
Escrita como extensão de uma mente vagueante que não tem, que não conhece, que esqueceu a sua morada, ou o caminho, ou que perdeu o mapa, ou que prefere fazer-se cartografa de si mesma, ou inventar o próprio caminho, ou fazer-se o caminho. Ou escrita não de uma mente, não só de uma mente, mas de um corpo, escrita matéria que é pó, que é alcatrão, que é calçada, escrita que se faz no desenho dos próprios passos sobre o caminho. Escrita que é corpo, que são passos, que é caminho, que é pó, que é alcatrão, que é calçada.
Concebido, ainda não nascido, viajou o meu avô no ventre de sua mãe, Conceição, cujo nome é típico das ilhas e diz a sua concepção.
Quando se fala de identidade, aquilo que nos liga a uma comunidade e é por isso género em relação ao indivíduo e particular em relação a um Sujeito Universal, a um Ser Humano, quantos de nós pode dizer qual é a sua morada, pode dizer que tem uma morada. O que habitamos hoje em dia são, sobretudo, não-lugares, lugares de trânsito, viajamos entre identidades mais do que repousamos nelas. Ainda que na bagagem levemos sempre lembranças, fotografias, filmes, roupas e canções que nos trazem recordações e nos levam de volta para esses lugares que nos fazem.
A meu ver, sou um escritor disperso, de texto diverso, mas ao chegar a esta ilha sei que estou no sítio certo. Sinto que estou mais perto do passado, pois agora estou mais qualificado para procurar. Entretanto, faço o que sei fazer melhor: exagerar. Para mim, escrever é falar, é falar sobre Escritas Dispersas, sobre Convergência de Afectos, falar sobre mim, sobre línguas e dialectos. É quem eu sou e porque aqui estou.
Escritas dispersas. Que se multiplicam por folhas soltas, por suportes distantes, por vozes diversas. Que são levadas pelo vento e são vento.
Afinal, sou um imigrante cultural. É-me intrínseco o movimento, por isso deixei a solarenga Califórnia pelo frio de Montreal. Aprendi uma nova língua, o francês, e os anos passaram. Agora aprendo uma língua velha, o português, a que me deixaram. Simultaneamente volto atrás para ver os passos que ficaram marcados e olho em frente, caminho para o futuro certamente, para descobrir aonde irei. Finalmente encontrei a minha boca calada e agora irei tentar, irei fazer com que esta se abra.
Escrita como extensão de uma mente vagueante que não tem, que não conhece, que esqueceu a sua morada, ou o caminho, ou que perdeu o mapa, ou que prefere fazer-se cartografa de si mesma, ou inventar o próprio caminho, ou fazer-se o caminho. Ou escrita não de uma mente, não só de uma mente, mas de um corpo, escrita matéria que é pó, que é alcatrão, que é calçada, escrita que se faz no desenho dos próprios passos sobre o caminho. Escrita que é corpo, que são passos, que é caminho, que é pó, que é alcatrão, que é calçada.
Concebido, ainda não nascido, viajou o meu avô no ventre de sua mãe, Conceição, cujo nome é típico das ilhas e diz a sua concepção.
O
que significa aqui to
walk back?
Andar para trás, voltar atrás? Na escolha de uma ou outra opção
está em causa um julgamento quanto ao lugar e nível de autonomia de
um indivíduo relativamente à sua comunidade, à história de uma
família. “Andar para trás” diz percorrer um caminho na direcção
inversa à que está a ser tomada, como quando idealmente invertemos
a nossa marcha natural, biológica, em direcção ao futuro e
recuamos até ao passado. Deste modo um indivíduo pode “andar para
trás”, fazendo o caminho feito por si, mas também o caminho
daqueles que o precederam, e que ele próprio não fez. “Voltar
atrás”, pressupõe fazer-se um caminho que um mesmo “sujeito”
já percorreu, fazer em sentido inverso o caminho já feito por esse
“sujeito”. Um indivíduo só “volta atrás” num caminho que
antecede a sua existência biológica se for tomado como momento de
um “sujeito” que supera os limites materiais que definem a
existência individual. Só assim a diáspora dos nossos avós se faz
a “nossa” diáspora, só assim podemos remeter a nossa origem
para fora da nossa geração biológica, só assim podemos definir o
percurso de procura das raízes da diáspora de uma família, como
sendo da busca das nossas próprias raízes, como sendo um percurso
que “nos traz até casa”.
Simas
on the final migration and how the departed are remembered by those
who are left behind ou
The End:
E
por fim o caminho que os outros fazem à nossa procura. Por fim
lápides assinaladas com imagens espectros do que já não somos, com
nomes que já não nos pertencem mas àqueles que nos chamam. Por fim
a última morada ornada de bandeiras e flores de plástico, coisas que traem nossa existência transeunte.
Marcos Cravinho
José Oliveira
Quem é Hans Hofmann e porque é que o mundo o estima?
Assim entrámos nos quartos do Forasteiro
que vinha todos os verões mais o seu dinheiro da renda
que pagaria o calor de inverno de uma família,
E alguém riscou um fósforo
e depois outro, mas não havia nada
para roubar naquele sítio cheio de lixo
Além de telas e madeira e tinta
e ferramentas demasiado estranhas a qualquer
um toque nosso, excepto uma faca.
De alguma forma o sonho de um homem
revelava-se em verde e vermelho brutal,
quadrados opacos de amarelo, rectângulos de azul.
Era uma coisa do um outro mundo
e por isso pincelámos de volta ao nosso -
fitas e grinaldas
e as bocas a florir arreganhadas.
Frank Gaspar
terça-feira, 27 de março de 2012
NIGHT
by: William Blake (1757-1827)
THE sun descending in the west,
The evening star does shine;
The birds are silent in their nest.
And I must seek for mine.
The moon, like a flower
In heaven's high bower,
With silent delight
Sits and smiles on the night.
Farewell, green fields and happy grove,
Where flocks have took delight:
Where lambs have nibbled, silent move
The feet of angels bright;
Unseen they pour blessing
And joy without ceasing
On each bud and blossom,
On each sleeping bosom.
They look in every thoughtless nest
Where birds are cover'd warm;
They visit caves of every beast,
to keep them all from harm:
If they see any weeping
That should have been sleeping,
They pour sleep on their head,
And sit down by their bed.
When wolves and tigers howl for prey,
They pitying stand and weep,
Seeking to drive their thirst away
And keep them from the sheep.
But, if they rush dreadful,
The angels, most heedful,
Receive each mild spirit,
New worlds to inherit.
And there the lion's ruddy eyes
Shall flow with tears of gold:
And pitying the tender cries,
And walking round the fold:
Saying, 'Wrath by His meekness,
And, by His health, sickness,
Are driven away
From our immortal day.
Proposta de tradução
Noite
O Sol descendo a poente,
A estrela d'alva brilha no céu;
Pássaros no seu ninho silente.
E eu, tenho de procurar o meu.
A lua, uma flor tal e qual
Na alta pérgola celestial
Numa alegria silenciosa
sorri e na noite pousa
Adeus, verdes campos e alegre arvoredo
onde rebanhos se deliciaram gulosos
onde anhos mordiscaram, andam em segredo
pés de anjos radiosos
Sem cessar derramam bençãos e alegria
numa corrida despercebida
em cada botão, ramo florido
em cada coração em peito adormecido.
cada ninho desatento espreitam
onde pássaros se resguardam no quente
As cavernas das feras visitam
e do mal as afastam sempre:
Se ouvem algum grito chorado
que quem não devia estar acordado
derramam sono sobre a sua cabeça
e ficam ao pé até que a manhã começa
Se o uivo de lobos e tigres presa pede,
apiedados estão e choram
procuram afastar a sua sede
e das ovelhas os apartam
Mas num ímpeto violento
cada anjo atento
recebe toda a alma terna
novos mundos que herda.
E do leão, seus corados olhos
hão de correr lágrimas douradas:
E apiedando os ternos choros
E rondando as ovelhas:
dizendo, "Ira de Sua bondade
E a doença de Sua sanidade
Uma e outra arrebatada
Da nossa imortal jornada.
E agora ao teu lado, anho a balir,
Posso deitar e adormecer,
ou pensar Nele que carregou teu nome
pastar depois de ti, e chorar.
Pois, banhado no rio da vida,
minha juba que sempre brilha
reluzirá como o ouro
enquanto o rebanho velo.
by: William Blake (1757-1827)
THE sun descending in the west,
The evening star does shine;
The birds are silent in their nest.
And I must seek for mine.
The moon, like a flower
In heaven's high bower,
With silent delight
Sits and smiles on the night.
Farewell, green fields and happy grove,
Where flocks have took delight:
Where lambs have nibbled, silent move
The feet of angels bright;
Unseen they pour blessing
And joy without ceasing
On each bud and blossom,
On each sleeping bosom.
They look in every thoughtless nest
Where birds are cover'd warm;
They visit caves of every beast,
to keep them all from harm:
If they see any weeping
That should have been sleeping,
They pour sleep on their head,
And sit down by their bed.
When wolves and tigers howl for prey,
They pitying stand and weep,
Seeking to drive their thirst away
And keep them from the sheep.
But, if they rush dreadful,
The angels, most heedful,
Receive each mild spirit,
New worlds to inherit.
And there the lion's ruddy eyes
Shall flow with tears of gold:
And pitying the tender cries,
And walking round the fold:
Saying, 'Wrath by His meekness,
And, by His health, sickness,
Are driven away
From our immortal day.
Proposta de tradução
Noite
O Sol descendo a poente,
A estrela d'alva brilha no céu;
Pássaros no seu ninho silente.
E eu, tenho de procurar o meu.
A lua, uma flor tal e qual
Na alta pérgola celestial
Numa alegria silenciosa
sorri e na noite pousa
Adeus, verdes campos e alegre arvoredo
onde rebanhos se deliciaram gulosos
onde anhos mordiscaram, andam em segredo
pés de anjos radiosos
Sem cessar derramam bençãos e alegria
numa corrida despercebida
em cada botão, ramo florido
em cada coração em peito adormecido.
cada ninho desatento espreitam
onde pássaros se resguardam no quente
As cavernas das feras visitam
e do mal as afastam sempre:
Se ouvem algum grito chorado
que quem não devia estar acordado
derramam sono sobre a sua cabeça
e ficam ao pé até que a manhã começa
Se o uivo de lobos e tigres presa pede,
apiedados estão e choram
procuram afastar a sua sede
e das ovelhas os apartam
Mas num ímpeto violento
cada anjo atento
recebe toda a alma terna
novos mundos que herda.
E do leão, seus corados olhos
hão de correr lágrimas douradas:
E apiedando os ternos choros
E rondando as ovelhas:
dizendo, "Ira de Sua bondade
E a doença de Sua sanidade
Uma e outra arrebatada
Da nossa imortal jornada.
E agora ao teu lado, anho a balir,
Posso deitar e adormecer,
ou pensar Nele que carregou teu nome
pastar depois de ti, e chorar.
Pois, banhado no rio da vida,
minha juba que sempre brilha
reluzirá como o ouro
enquanto o rebanho velo.
domingo, 25 de março de 2012
Traduções dos dois poemas de Frank
Gaspar
Esnestina, a mulher do sapateiro
“Tens os olhos dele”, disse-me ela,
e virou-se para a minha velha tia “Esses são
os olhos que eu vi!” E voltava a contar
como São Francisco a agarrou no bosque
quando era uma jovem rapariga. Dominic,
o seu marido, nunca ficava sentado
quando ela falava disso, levantava-se lentamente
da cadeira Morris e ia lá para fora,
por entre as fiadas de couves e de milho
até ao seu celeiro, os seus martelos e formas.
“Ele deixou-me sem fôlego,”
disse ela, os finos dedos arqueados junto ao peito.
“Não foi o que pensas. Ele era um poder,
um animal. E a chuva começou a cair, e ele agarrava-me ali,
o meu vestido colado, o meu corpo mostrado.”
Quando eu queria escapar-me
e sentar-me entre as hervas
de cheiro forte
no jardim, elas deixavam-me ir
e continuavam a falar por trás das cortinas
que inspiravam e expiravam no ar vagaroso,
e rezavam o terço juntas,
lengalengando pelos Mistérios. “Não a irrites,
disse-me a minha mãe. “É uma bruxa
e pode deitar-te mau olhado.”
“Essa conversa é uma tolice”, disse a minha tia.
Sempre que saíamos, a minha tia agarrava-me
pelos braços e inclinava-se – “Lembra-te,
o que ela conta foi apenas um sonho!”
Mas lembrava-me do martelar do Dominic como um sino,
e como ela disse que até as árvores molhadas estremeciam.
Quem é Hans Hofmann e porque é que o mundo o estima?
Assim entrámos nos quartos do Forasteiro
que vinha todos os verões mais o seu dinheiro da renda
que compraria o aquecimento invernal duma família,
E alguém acendeu um fósforo
e depois outro, mas não havia nada
para roubar neste sítio cheio de lixo
Apenas lonas e madeira e tinta
e ferramentas demasiado estranhas para qualquer
dos nossos toques, exceto uma faca.
De certo modo o sonho de um homem
brotou em verde e vermelho brutal,
quadrados opacos de amarelo, retângulos de azul.
Era algo de um outro mundo
e por isso voltámos de mansinho ao nosso –
fitas e grinaldas
e as embocaduras denteadas e floridas.
Variação sobre o poema
Ernestina the shoemaker’s
wife
Trata-se de uma continuação
imaginada do poema original, que temporalmente começa na mesma altura e termina
anos mais tarde. O protagonista é o mesmo, Francisco/ Francis/ Frank (Gaspar).
Eu era um jovem impressionável então,
Tinha medo do escuro, e à noite,
em casa, olhava para trás de mim,
quando andava pelo corredor,
receoso que algum maléfico ser me atacasse
O dr. Richards mirava-me e abanava a cabeça.
Levavam-me a ele quando o terror noturno
era excessivo. “Não há demónios, nem assassinos,
nem bruxas, a não ser na tua imaginação”. Mas,
as sombras da casa ainda me arrepiavam.
Cresci, saí da terra para estudar, conheci mundo.
Fiz muitas viagens, andei por muitos sítios.
Um dia, cansado, regressei e voltei para a casa,
que mantivera fechada sem nunca a vender.
Era a mesma casa dos corredores da noite.
Tinham morrido, o Dominic e a Ernestina. A minha
tia igualmente. Já não havia ninguém do tempo de outrora.
O celeiro tinha ardido e em seu lugar havia agora
um cinema ao ar livre. Ao sábado à noite aquilo enchia-se,
e os namorados nos carros não viam o filme.
Numa noite sem lua, sem sono, fui dar um giro
e os meus passos levaram-me ao bosque, o mesmo
das aparições da velha bruxa. “Disparates”, sosseguei-me
enquanto andava. Mas algo no ar tremulou, e um sussurro
foi audível atrás de mim. Prossegui sem olhar para trás.
“Francisco” … “Francisco” … Parei gelado e lentamente
voltei-me a este chamamento.No meio do caminho estava
ela, a mulher do sapateiro. Irradiava uma luz fosforescente.
Tinha os traços rejuvenescidos, figura de rapariga
bela, atraente, sedutora. Estendia-me as mãos – “Francisco”.
Aproximei-me da visão, sem dar conta de que o fazia.
“Sim, estes são os mesmos olhos do santo. Os olhos dele
mesmo.”
Os meus braços descontrolados voaram para
a enlaçar. Mas quando a puxei para mim ela desfez-se,
e despertei suado e chorando na imensa cama vazia.
História sobre
o poema
Who is Hans Hoffmann and why does the world esteem him ?
Esta história pôe em cena
personagens imaginárias e reais. Os imaginários são uma mulher de idade,
luso-descendente, e os seus netos, a quem ela conta uma história passada
consigo. Ela exprime-se em português, com uns anglicismos à mistura. Os netos
não falam mas compreendem o português da avó.
Quanto aos personagens reais, são
o artista e professor Hans Hoffman, e um dos seus alunos em Provincetown, o
pintor Robert de Niro Snr, e ainda o filho deste, o ator Robert de Niro. Há um
outro personagem fictício, o agente português do ator.
-
C’mon, grandma, tell us a story. It’s not late yet. Tell us that one about the
famous actor’s father.
- Mas eu já vos contei essa história
tantas vezes !
- Tell us again.
- Bom, está bem. Mas será em
português, que eu com o inglês não me entendo.
-
That’s all right, we get it.
- Então cá vai. Isto foi para aí em
1952 ou 1953, no Verão. Nesse tempo eu era uma criança. Tinha sete ou oito
anos, como vocês têm agora. A história espantosa que vos vou contar passou-se
aqui mesmo, em Provincetown.
“Nessa altura havia mais de nós,
portugueses, na cidade. Certas ruas só tinham portugueses, nem um americano,
nem um inglês, nada. Nem mesmo italianos ou irlandeses. Eu vivia numa rua
assim. Tudo gente da nossa. Os mais velhos quase não diziam uma palavra de
inglês. Em casa só falávamos português. Na escola aprendi inglês, mas como
desisti passados poucos anos e depois me casei muito nova com o vosso grandpa António, acabei por esquecer.
Nunca me fez grande falta o inglês. Fiz muito bem a minha vida, rodeada de
portugueses.“
-
Can you skip that, please, grandma ? We know it by heart.
- E também sabem o resto, seus
marotos. Mas como eu estava a dizer, foi há cerca de uns sessenta anos que esta
história começou. Na minha rua havia a família Santos. Eles viviam bem, num
apartamento, e alugavam outro que também tinham.
“Houve um Verão, o tal de 1952 ou
1953, em que o alugaram a um homem estranho. Estranho não, era só diferente de
nós. Era estrangeiro, vestia-se de uma maneira funny, e tinha um sotaque muito carregado. Passava os dias metido
no apartamento a pintar quadros. Chamava-se Ofma, ou Ofman, não sei bem.
“Além de pintar também dava aulas de
pintura. Tinha sempre alunos e alunas, mais novos, a pintar com ele, a ver como
ele fazia. Eu ia lá vê-los a pintar, deixavam-me entrar. Às vezes punham-me um
pincel na mão e guiavam-na sobre o canvas.
“Um desses alunos era um rapaz moreno,
o Roberto. Muito miudinho, fartava-se de fazer estudos antes de pintar um
quadro. Eu chegava a ter pena dele. Um dia perguntou-me se eu queria que me
fizesse o retrato. Pode ser, disse-lhe eu.
“Bem, não queiram saber no que me fui
meter. Foram dias e dias de posing,
como ele dizia – horas parada, em pé, sem me poder mexer. Às vezes tinha
comichão e queria coçar-me, mas ele gritava logo ‘STILL !’ e eu tinha que aguentar, muito quietinha.
“No fim – após mais de uma semana de posing – ele disse que estava acabado e
olhei para o quadro. Um horror, uma mistela de manchas de várias cores. Fiquei
com a testa verde e o nariz azul, o cabelo vermelho quando o tinha castanho …
não se aproveitava nada. Dez dias de tortura para dar naquilo. Nem sequer
estava parecida.
- And then ?
- O Roberto assinou o retrato e
disse-me que eu podia ficar com ele. Pensei em recusar, mas depois achei que
com tanto sacrifício da minha parte mais valia conservá-lo. Arrumei-o num
armário e lá ficou muitos anos.
- How many years ?
- Oh, mais de trinta. Foi em 1985 que
aconteceu a segunda coisa fantastic.
- What was that ?
- Foi no fim do Verão desse ano, em
Setembro. Eu vinha do grocer, tinha
ido comprar ingredientes para fazer um bolo – ainda me lembro – e nisto passa
por mim um carro, muito devagarinho. Era um carro preto, grande, muito
brilhante, e quase não fazia barulho. O carro parou um pouco adiante e saiu
dele um senhor muito bem vestido, com uns óculos escuros, e mais um outro
senhor moreno.
-
What was his name – the well-dressed one’s ?
- Esperem, já vai. Bem, o senhor
moreno falou para mim, em português. Disse-me que era o agent do outro senhor, que andavam à procura duma coisa, e
perguntou-me o nome. Dei-lhe o meu nome e ele quis saber se um certo artista
tinha feito o meu retrato, muitos anos antes.
“Já me tinha quase esquecido do caso,
mas depois lembrei-me daquela rubbish
que o Roberto tinha pintado de mim. Convidei-os a entrar e fui procurar o
quadro. Ainda estava no mesmo armário ! Voltei à sala e desembrulhei-o. Quando
o viu, o senhor bem vestido chorou, mas tentou disfarçar, limpando com o lenço.
Fiquei espantada, sem perceber porque é que se emocionava assim.
-
And then what did he do ?
- Perguntou-me se podia ficar com o
retrato. Pagando, é claro.
- What
did you tell him, grandma ?
- Estive quase para dizer que podia
ficar com ele for free, que até me
fazia um favor se o levasse. Mas em vez disso respondi que sim, que lho vendia
pelo preço que ele quisesse pagar. Aí o senhor agradeceu-me muito e beijou-me
as mãos. Era um homem muito good looking, e se eu não fosse casada não
sei não.
- You’re naughty, grandma.
- Qualquer uma seria. Bom, o senhor
agradeceu, como eu disse, e saiu. Foi-se meter no carro.
- And the other guy ?
- O outro senhor, o agent, passou-me um cheque.
- How much ?
- Um milhão de dólares ! Caí das
nuvens, não queria acreditar. Tanto dinheiro por uma pintura. Fiquei parada,
com o papelinho do cheque na mão, sem entender. O agent voltou a embrulhar o quadro e preparou-se para sair.
-
What did you do, grandma ?
- Perguntei-lhe quem era o senhor bem
vestido.
- What did he say ?
- Baixou a voz e disse que era o ator
Robert de Niro, e que o pintor do quadro era o pai dele, que também se chamava
Robert. O mesmo Roberto que me obrigou a fazer o posing !
- And you ?
- Fiquei paralisada de espanto. O
Robert de Niro, um dos atores meus preferidos, tinha estado em minha casa,
falado comigo, tinha-me beijado a mão ! O meu retrato tinha sido pintado pelo
pai dele ! Isto era tudo too much,
não me conseguia convencer que tinha acontecido. Pensando bem, o tal retrato
não era assim tão bad ! Podia não
estar muito parecido, mas às vezes vemos uma amiga na rua e não a reconhecemos
logo, não é ? E aquelas cores, aqueles azuis e vermelhos – ora, temos é que
manter o espírito aberto, evoluir, right
?
domingo, 18 de março de 2012
Proposta de tradução "The Holyoke" de Frank X. Gaspar e trabalho criativo
The Holyoke
As letras de ferro em relevo,
aquelas duas palavras forjadas em arco
naquela caldeira no quarto de banho,
The Holyoke,
são os primeiros símbolos que alguma vez desvendei
o meu tio-avô dizendo-me os seus sons,
alongando-se no e do The
tal como o assobio de um bule de chá.
A caldeira não funcionava.
aqueciamos a água no fogão
numa tina de cobre, nada de especial,
mas um facto a que me apego
tal como me apego à qualidade da luz
que parecia sempre derramada
sobre o apertado passeio ao longo da casa,
um cinzento invernal, gelo antigo, cinza de carvão,
a película sobre o olho do meu tio-avô.
Quando o meu tio-avô morreu
a sua pensão deixou de vir.
Esse foi o tempo sombrio.
Algum tempo depois fiquei curioso.
Abri a porta arqueada
da velha caldeira
e fitei uma serpentina em espiral
engrossada pelo pó.
Passei o lá o dia
no chão do quarto de banho,
avançando cautelosamente até ao coração da coisa,
revirando tubos,
remexendo as peças com um velho cabide.
Quando acabei, enchi a garrafa de petróleo
e acendi o pavio
Caiu o crepúsculo, e aquela luz plana
pendurava-se na janela quadrada.
Quando abri a torneira, caiu água,
Staccato, castanha, quente como carne.
Breve memória descritiva do filme
Este poema inclui-se no livro de poesia homónimo de Frank X. Gaspar, a sua primeira obra poética e aquela que o lançou para a carreira que o autor tem hoje. Paradoxalmente, a obra também evoca uma certa nostalgia em relação aos seus tempos de infância na comunidade portuguesa de Provincetown sem mencionar as palavras "protuguês" e "Provincetown", como o próprio autor refere no prefácio do livro. Assim, o autor desliga-se de toda a carga que palvras como "saudade" ou "português" podem trazer ao texto não deixando, no entanto, de lhe trazer um sabor português mas conferindo-lhe assim uma identidade única.
Quanto ao poema em si, este é o retrato de algumas memórias de infância do autor, despoletadas pela imagem da caldeira "The Holyoke". As sensações de quente e frio, tal como as variações de luz, perecem variar conforme episódios da vida do autor e os vários estados da água parecem ser metáforas para nos dar conta dos momentos melhores e piores na vida deste (na primeira estrofe temos a imagem do bule de chá, que normalmente deita vapor; na segunda estrofe, já com a morte do tio-avô eminete, temos imagens de gelo, neve e água fria; e na última finalmente a água quente. O filme pretende retratar estes mesmos estados da água (vapor, água fria, gelo e água a ferver) e cadenciar estas imagens com jogos de luz (o claro da luz no passeio e o escuro da cegueira (cataratas - "the film over my great-oncle's eye") do tio-avô. Não se pretende, no filme ilustrar com imagens aquilo que o autor já nos mostra com paravras, mas sim usar as metáforas existentes no texto para dar uma amplitude sensorial deste.
Relatório
da tradução de
Walk
Back, Look Ahead, a Chronicle
Este
ensaio é da autoria do escritor americano, de origem açoriana,
Richard Simas. Nele, a narrativa biográfica (sobre a sua família de
ascendência açoriana) e autobiográfica, convive com o discurso
reflexivo sobre a experiência e o sentimento do autor em relação à
língua, literatura e cultura portuguesas (sobretudo dos Açores),
sobre a sua identidade enquanto “escritor disperso” e “imigrante
cultural” (termos pelos quais se define), mas também sobre as
noções de identidade (cultural, étnica, nacional) e miscigenação.
Apesar
de no início a linguagem ser mais coloquial, podemos identificar
como característica que percorre todo o texto o uso de uma linguagem
cuidada e de registo predominantemente literário, optando o autor
muitas vezes por usar termos e expressões próprias deste registo em
detrimento de outras de um registo mais neutro ou coloquial, por
exemplo: «I
would hope
to say», em vez de «I would like to say» (pág. 1); «nor
did he attempt
to teach me», em vez de “try”(pág. 2); «my grandfather’s
first voyage»,
em vez de “trip”(pág. 3); «It occurred»,
em vez de “it took place” (pág. 3); «wildest dreamings»,
em vez de “wildest dreams”(pág. 3).
Contudo,
é importante considerar este ensaio (pelo menos a parte que foi por
mim traduzida) como estando dividida em três momentos, entre os
quais há uma progressão desde uma linguagem e expressividade mais
coloquial para uma mais poética.
Na
introdução temos a presença de várias expressões e formas de
dizer próprias da coloquialidade, sendo que as frases se alongam
para lá do momento em que se esperaria uma pausa, transmitindo um
ritmo e uma fluência próprias da oralidade: «I
am not an academic, a publisher, or a translator, however if
anything, I am a “scattered writer,” and having landed here on
this island, I assume that I am approximately in the right place»,
«Fellini was Italian, still what he says is so true and there is the
question of his choice of fish, the cod», «I
would hope to say something useful here about your subject of
Escritas
Dispersas, Convergência de Afectos,
but I warn you that it will still be about me, or someone who is like
me and is writing this text.» (pág. 1). Este registo permanece no
primeiro parágrafo do primeiro capítulo: «People told me that it
was a crazy thing to do», «Now I am learning an old language,
Portuguese, also a choice and something more, but not that crazy
either» (pág. 2). Na última frase, anuncia-se já aparecimento do
registo mais poético que caracteriza a parte final do excerto
traduzido: «I am walking back to discover the steps left behind me
or I am moving forward to discover where they will lead» (pág. 2).
O registo coloquial dominante no início do ensaio justifica-se,
julgo, por o autor se dirigir aqui diretamente a uma audiência,
procurando, intencionalmente, escrever como se fala.
Nos
três parágrafos seguintes, em que o autor nos fala da família de
seu pai, sob a forma de narrativa, a
linguagem e as formulações aproximam-se, julgo eu, de um registo de
prosa mais convencional , sem se inclinar para a coloquialidade, por
um lado, ou para o artifício poético, por outro. Mas também neste
momento aparecem algumas formulações de expressão mais poética,
por exmplo: «a woman whose name contained the word and notion of his
own presence, Conceição» (pág. 3).
Num
terceiro momento, quando o autor reflete sobre os temas referidos
acima referidos, e passa depois a contar-nos como descobriu a cultura
e literatura açoriana, o registo da linguagem eleva-se, o discurso
tornasse mais artificioso e próximo da prosa poética, construindo o
autor várias imagens e metáforas originais para expressar as suas
ideias: «I am searching for the ancestral roots of my words» (pág.
4); «I want to know who was born from those words, how they lived
and where» (pág. 4); «another wandering soul shoves off from an
(I)-land into dark waters, drifting away in a small boat with a
bundle of possessions and a tense heart » (pág. 5).
Outra
característica desta parte do ensaio é o uso de frases curtas, com
as quais o autor acentua e destaca certas ideias, e que contribuem
para a criação uma forma de expressão concisa que se distancia da
forma de dizer comum, constituindo-se como um elemento da linguagem
literária própria do autor. Por vezes o mesmo efeito é criado
sobre palavras e expressões simples, que aparecem entre pontos
finais sem que constituam uma frase, por exemplo: «...or
I am moving forward to discover where they will lead. Of
course, both»
(pág. 2); «...similar to so many other stories. Still.
My interest...» (pág. 4); «Not bones, but the sounds and souls»
(pág. 4); «I am absolutely nothing other than them. Us.
Dust, codfish, scattered islands»
(pág. 4).
Analisado
o texto, começo agora por falar do modo como tratei as expressões
em português no texto de partida. Não achei importante dar a
entender, de algum modo, que a citação inicial, o «movimento» e a
«impureza» que dão nome aos sub-capítulos, ou a «viola da
terra» da página 3 estão escritos em português no original, pelo
que me limitei a trocar o itálico pela grafia normal. Tal
conhecimento é importante em «cala
a boca, cala a boca, tu não sabes falar»
(pág. 2) e «to open a
boca calada»
(pág.3), mas no primeiro caso há uma referência direta no texto de
que se trata da citação de uma frase em português, pelo que me
limitei a trocar o itálico pelas aspas; no segundo caso, a mesma
troca também torna explicito que se está a fazer referência à
frase antes referida.
Consideremos,
agora, algumas dificuldades de tradução e a justificação das
escolhas tomadas.
No
primeiro parágrafo pareceu-me uma solução demasiado simplista
traduzir literalmente «I am relatively new» por «Sou relativamente
novo». «Sou ainda novo» ou «sou ainda principiante» pareceram-me
soluções que se adequavam mais ao modo de falar português, mas
perdia-se a ideia dita por «relativamente», de que «ainda» de
aproxima mas da qual não é um equivalente perfeito. Preferi, por
isso traduzir por «sou relativamente inexperiente», sendo que este
adjetivo indica que ainda não se lidou muito tempo, ou
profundamente, com questão referida , que se está agora a começar.
Julgo que é esse também o sentido de texto de partida.
No
mesmo parágrafo diz-se: «I
have written about different things in various media, one of which
was an essay on Azorean marching bands, Espírito
Santo,
and immigration». Parece-me que o autor não quer dizer que
escreveu sobre o próprio «Espírito Santo» (pelo contexto se
percebe que não se trata de preocupações teológicas), mas sobre
algum tipo de celebração deste, que seja popular nos Açores. As
«festas do Espírito Santo» são, de facto, uma celebração
popular no arquipélago. Pareceu-me, por isso, importante corrigir o
texto de partida, acrescentando as «festas do» ao «Espírito
Santo».
Consideremos
agora a expressão que surge no final deste parágrafo: «that has
its problems, but as such, I am for once totally qualified to be
where I am». A minha primeira dificuldade aqui foi determinar que
termo poderia traduzir aqui adequadamente «for once», pois «desta
vez», ou «pelo menos esta vez», que são as traduções mais
habituais, apesar de fazerem aqui sentido, não pareciam dar um tom
natural à frase portuguesa. À
falta de um equivalente perfeito, pensei que o mais importante seria
transmitir a ideia de “circunstância exclusiva” que a expressão
da língua de partida transmite, de que a condição antes referida,
apesar de ser problemática, “neste caso (em particular)”
torna-me «totally qualified to be where I am». Preferi omitir, na
tradução, a expressão «as such» (que seria aqui “deste modo”)
pois achei que tornava a frase demasiado pesada e pouco fluida, sendo
que não acrescenta significado ao texto de partida, mas tem mero
valor enfático. Preferi transformar o «I
am
for once...» em «torna-me», para evitar a repetição do “estou”
com o «estar onde estou» que se lhe seguiria.
Ao
traduzir a citação de Fellini que aparece no segundo parágrafo –
«Even
if I wanted to make a film about codfish, it would still
be a film about me» – achei melhor traduzir «still» por «sempre»
em vez de usar os termos que traduzem de forma mais direta o termo
inglês, “ainda” ou “ainda assim”. A primeira opção não
faz aqui sentido, e com a segunda o discurso não ficava tão fluido.
Sendo que aquilo que Fellini nos diz é que qualquer filme que
realize será sempre um filme sobre si mesmo, trocar “ainda assim”
por “sempre” não altera o sentido essencial da frase e esta
resulta mais agradável.
O
terceiro parágrafo é a afirmação: «I am a cultural immigrant».
Sendo esta uma afirmação da identidade do autor, que aparece
isolada, querendo o autor, deste modo, acentuar o tom da afirmação,
pareceu-me que a frase ficaria enfraquecida sem começar pelo «Eu»,
dizendo-se simplesmente: «Sou um imigrante cultural».
No
início da segunda página (sexta linha), aparece a expressão: «in
the exquisite blur of hindsight», a qual é de difícil
interpretação, prestando-se a várias alternativas. «Hindsight»
não levanta problemas, pois só pode, aqui, ter o sentido de
“visão/imagem retrospetiva, a
posteriori,
sobre os/dos factos”. «Blur» pode significar “nódoa, mancha,
névoa”, ou “uma imagem turva, obscura, confusa, seja visual ou
mental”. «Blur» parece aqui qualificar o modo como aparece a
“visão/imagem retrospetiva”, dizendo que ela é turva. Mais
problemática é a tradução de «exquisite». Entre as
interpretações possíveis, pareceu-me mais correto considerar este
adjetivo como qualificando, tal como «blur», a visão retrospetiva,
na medida em que ele é usado para qualificar uma perceção,
sensação ou qualidade percetiva como sendo “intensa, aguda,
apurada, penetrante”. Constitui-se, assim, uma imagem que concilia
termos com sentidos quase opostos, em que uma “visão retrospetiva”
se faz “penetrante apesar de turva”.
Não
consegui encontrar um termo que traduzisse «sharecropper farm» (pág
2, 2º par.), apenas para aquele que pratica “sharecropping”, o
“sharecropper”, que em português se diz “meeiro”. O discurso
resultante saiu pouco fluido, mas de todas as soluções que
experimentei foi a que me pareceu mais económica e fluida. Contudo,
esta formulação parece ter o inconveniente de, para a pessoa que
não conhece o sentido do termo «meeiros», este poder ser
compreendido como designando o tipo de trabalho exercido na quinta e
não o estatuto contratual daquele que explora o terreno. Pensei
mudar o termo «meeiros» por «rendeiros», por ser este um termo
mais familiar ao leitor português e referir uma realidade
semelhante. Contudo, pareceu-me que, neste caso, uma pequena troca
deste tipo, seria demasiado infiel ao texto de partida, pois não se
teria a referir um fenómeno específico e marcante da realidade
rural americana da época que é aqui descrita (o sistema de
exploração da terra em sharecropping).
No
mesmo parágrafo, a expressão «Roaring Twenties» foi traduzida por
«Estrondosos Anos 20». Preferi esta tradução à mais habitual,
«Loucos Anos 20», porque logo a seguir o autor joga com esta
expressão dizendo: «Though there was nothing “roaring” about
their small enterprise...». “Estrondoso” está até mais próximo
do sentido de “roaring”, sendo que, julgo eu, não deixa de ser
explicito que há uma relação entre esta expressão e a habitual
«Loucos Anos 20», que ambas designam o mesmo fenómeno,
transmitindo uma mesma imagem dos anos 20. Por outro lado,
“estrondoso” adequa-se ao contexto da sua segunda ocorrência de
“roaring”, sendo este um uso comum do termo.
Ainda
neste parágrafo, ao traduzir «you won’t find us standing in a
welfare line», foi necessário traduzir o «you», e não dizer
somente «não
nos verás na fila da segurança social», pois logo a seguir diz-se:
«The
“us” was the essential word in his statement” »,
fazendo-se referência ao primeiro «us».
No
fim do segundo parágrafo da página três, em que o autor relata a
viagem de seu avô, ainda na barriga de sua mãe, da ilha do Pico até
à Califórnia, o autor refere-se à última fase da viagem, após a
travessia do Oceano Atlântico, como sendo «across
frontier
North America». Não tenho a certeza se compreendi corretamente esta
noção. Será uma referência à indeterminação dos limites
fronteiriços e à expansão territorial, nomeadamente, neste caso, a
expansão para oeste, por que passaram os Estados Unidos desde a
independência até meados dos século XIX, o que significaria a
travessia de fronteiras dentro do continente? (Pelo que pude
entender, por algumas leituras que fiz, no período a que se refere a
história narrada pelo autor, o território americano já estava
completamente expandido até ao Pacífico). Ou quererá o autor
dizer, simplesmente, que o seu avô entrou, então no território
Americano, passando a sua fronteira? Não tendo a certeza do que está
aqui a ser dito, julgo que a minha tradução, correndo o risco de
ser infiel às palavras do texto, não o é ao espírito do relato e
ao tom de aventura que é transmitido, expressando a ideia da longa e
turbulenta viagem até chegar à Califórnia.
Na
tradução da frase «[I want to] stoop
through
the low doorways of their old homes», que aparece no segundo
parágrafo da página quatro, a tradução do phrasal
verb
sublinhado é problemática, porque não é possível transmitir em
português a mesma ideia com a mesma concisão. Optei por traduzir
«atravessar as portas baixas...» omitindo a referência ao ato de
“curvar-se”, pois pareceu-me que este ficaria subentendido, e que
a expressão “curvado atravessar” ficava aqui pesada e tirava
fluência ao texto.
Logo
a seguir diz-se. «My own name means very little in comparison». “To
mean very little” significa “ter muito pouca importância”.
Contudo, como o que tem aqui pouca importância é «my own name»,
parece-me que o autor tira, aqui, partido do sentido de “to mean”
como sendo “significar”. Daí ter optado por traduzir «means
very little» por «tem muito pouco significado», usando uma forma
menos usual de dizer “ter muito pouca importância”, para
transmitir o duplo sentido expresso no texto de partida.
Na
frase «I want to eat
a meal
with the family of my own words», que aparece no primeiro parágrafo
da página quatro, preferi traduzir a expressão sublinhada por
«almoçar», em vez da tradução mais literal «comer uma
refeição», por que achei que soava mais natural, de registo mais
elevado, e tornava o discurso mais fluido, sem sacrificar o sentido
essencial da frase. «Quero comer com a família...» é uma
alternativa que mantem a fluência, mas o seu registo, mais familiar,
choca com o registo global do texto e com o tom poético da frase.
No
parágrafo seguinte aparece a frase: «sometimes the story grows
so faint I fear that it will become
inaudible». O facto de ambos os verbos sublinhados serem comummente
traduzidos pelo mesmo verbo, aquele que usei para traduzir o
primeiro, “tornar(-se)”, obrigou-me a procurar um outro verbo que
pudesse ser aqui usado com o mesmo sentido. Lembrei-me que o verbo
“fazer” na sua forma reflexa é, por vezes, usado com o sentido
do verbo “tornar” na mesma forma. Esta solução revelou-se,
julgo eu, feliz porque eleva o tom do discurso da tradução, uma vez
que “fazer-se” pertence a um registo mais elevado que
“tornar-se”. Aparece, por exemplo, na Bíblia dos Capuchinhos nas
seguintes passagens: Jo 1, 14, «E o Verbo fez-se homem e veio
habitar connosco»; Dn 14, 28 «O rei fez-se judeu!»; Gn 25, 27
«Esaú fez-se hábil caçador».
Na
frase que aparece no parágrafo seguinte, «Its
endless reconfigurations and variations sing to me a music towards
which I
am helpless to resist
moving»,
a parte sublinhada foi traduzida «me acho incapaz de resistir» em
vez de uma tradução mais literal «sou incapaz de resistir». Esta
solução eleva o tom da frase, pois o seu registo é mais poético
que a alternativa, de registo mais neutro, reforçando, ainda, a
ideia de impotência que é transmitida.
Quanto
à tradução de «drifting away», penso que este phrasal
verb poderia
ser aqui traduzido de dois modos: “afastando-se” e “levada”.
Tive que considerar as duas alternativas, e julgo que ambas têm
pontos contra e a favor. Logo à partida deve-se notar que “drifting
away” concilia a imagem do “afastar-se” ativo e do “ser
levado” passivo. A primeira alternativa tem a vantagem de não
excluir a hipótese de este “afastar-se” se dever a forças
exteriores, apesar de tal não ser sugerido com a mesma força com
que o faz a expressão inglesa. Já a segunda alternativa de tradução
exclui por completo o papel ativo do sujeito. “Levada” tem,
contudo, a vantagem de ter, neste contexto, um registo mais poético
pois, como “drifting away”, transmite a ideia de flutuação e
movimento sobre e pelas águas, aparecendo em imagens como “ser
levado pelas águas/pela corrente”. Por isso, apesar da componente
passiva do verbo de partida resultar, talvez, excessivamente
acentuada, e a componente ativa excluída, preferi esta alternativa
de tradução.
Por
último, quero fazer aqui referência ao que me parece ser um erro
ortográfico no texto. Na seguinte frase, «How
do you accept the essential momentum of life itself, history, and its
natural resistance to purity, its imminent
mutations...»,
presente no primeiro parágrafo da página cinco, parece-me que o
termo que faz aqui sentido não é «imminent mutations» mas
“immanent mutations”. Não tendo forma de confirmar tal, para lá
do meu falível discernimento pessoal, preferi traduzir ipsis
verbis.
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