“Plot”
Os leitores viram as costas, com
algum alívio, à exigente tarefa intelectual de analisar os elementos formais de
um texto – o enquadramento, a dicção, a metáfora e o tempo –, para prestar
atenção ao que nele acontece. Claro que a "leitura" do argumento tem vindo a ser ridicularizada, sendo algo que os leitores mais cultos não praticam. Contudo, tal
como Peter Brooks afirma na sua influente obra Reading for the Plot, os leitores mais talentosos nunca satisfazem
a sua fome sobre “o que aconteceu” e a sua sede de leitura até ao fim da
história. De facto, qualquer desejo textual verdadeiro deve ser construído
sobre a jovem e espontânea vontade de viajar com o autor para onde quer que o
argumento se dirija. “O argumento…parece ser assim, a via central através da
qual nós, como leitores, damos sentido em primeiro lugar ao texto para depois,
usando-o como modelo interpretativo, dar sentido à vida. “Conhecer e conviver
com as personagens, usar a imaginação para entrar em cena e atravessar os
eventos, parece ser uma das coisas fundamentais a fazer com uma história.
O argumento de uma história é
semelhante a uma proteína: uma cadeia de aminoácidos. Porém, a mera sequência
de aminoácidos não é suficiente para esta desempenhar a sua função. Para além
da ordem, precisa da forma. Precisa de enrolar-se sobre si mesma e assim
constituir pontos de contacto e sítios
para outras moléculas. A molécula de hemoglobina, por exemplo, é uma longa
cadeia de aminoácidos enrolada de maneira a alocar no seu interior um átomo de
ferro. A proteína apenas cumprirá o seu dever de transportar oxigénio quando na
sua configuração puder aninhar este átomo. Do mesmo modo, o argumento começa
com uma cadeia de eventos cronológicos ligados entre si. Normalmente, estes
eventos podem ser descritos em poucas frases: “John Marcher e May Bartram
conhecem-se em Nápoles e são apanhados no meio de uma tempestade num pequeno
barco de uma baia. Muitos anos mais tarde, voltam a encontrar-se na casa de um
amigo comum e caem numa intimidade casual. Nunca se casam, em parte pela crença
fatalista de Marcher em que algo de terrível lhe aconteceria. May oferece-lhe o
seu amor, mas Marcher não a ouve. A morte de May, devido a uma doença no
sangue, faz Marcher perceber o terrível erro que cometera ao não aceitar e
retribuir esse amor. O argumento de The
Beast in the Jungle de Henry James, construído sobre este fino andaime,
instala uma tremenda intensidade e significado, não pela virtude de o “que aconteceu”
mas pela virtude de revelar “como aconteceu”, curvando-se sobre si próprio em flashbacks reflexivos e assustadores esforços
para vislumbrar o futuro. Aquilo que “abriga” os ninhos desta cadeia de eventos
é o amor silencioso de May, o solipsismo odioso de Marcher, o lugar do
casamento nas vidas comuns, as fontes de angústia e sofrimento, e a sensação de
que o valor de cada um depende da tristeza do outro perante a nossa própria
morte. Como é evidente, não podemos separar o argumento da forma como foi
concebida. Ao descrever a relação entre o argumento (James chama-lhe ideia) e a
sua forma, em The Art of Fiction,
James afirma: “à medida que o trabalho é bem-sucedido, a ideia permeia e
penetra-o, informa e anima-o, de modo a que cada palavra e cada pontuação
contribuem directamente para a sua expressão. Nesta medida, perdemos a sensação
da história ser como uma tesoura que pode cortar mais ou menos bainha. A
história e a novela, a ideia e a forma, são a agulha e a linha, e nunca ouvi
falar de uma alfaiataria que recomendasse o uso da linha sem agulha ou da
agulha sem a linha”. Do mesmo modo que o biólogo, hoje em dia, nunca
distinguiria entre a anatomia e a fisiologia, o leitor sabe que nunca deve
afirmar o argumento como inevitavelmente separado da forma.
No entanto, algo acontece nas
histórias que ultrapassa, em grande parte, a linguagem usada ou o estilo
adoptado. E “o que acontece” nem sempre é evidente – as ambiguidades proliferam
em obras modernistas como To the
Lighthouse, de Woolf ou Finnegan’s
Wake, de Joyce e nos romances pós-modernistas como Time’s Arrow, de Martin Amis ou The
New York Trilogy, de Paul Auster. Os leitores inexperientes temem que
argumento não seja visível na sua totalidade. Procuram nas “Cliffs Notes”, ou
noutro tipo de fontes, a garantia de que estão a “perceber” o significado a
retirar de uma leitura. Através da vivência da leitura, ganham confiança em que
as suas interpretações sobre o significado da obra estarão à altura de
quaisquer outras. Quando Frank Kermode escreve que “ a ficção existe para
descobrir as coisas e ela muda à medida que a necessidade de fazer sentido
muda”, sugere a pluripotência e a flexibilidade da mesma em diferentes mãos.
“Pois o mundo é o nosso amado código. Efectivamente, gosto de pensar nele como
um lugar onde nós… vivendo e lendo, conseguimos viajar de um lado para o outro,
adivinhando as congruências, as conjunções e opostos; extraindo segredos do seu
segredo, compreendendo as relações, uma álgebra adequada.” Ele convence-nos que
a nossa tarefa como leitores pode ser tão enfática como a do escritor, embora
de um modo diferente, porque somos nós quem dá um sentido aos eventos do
argumento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário