terça-feira, 21 de fevereiro de 2012


“Plot”
Os leitores viram as costas, com algum alívio, à exigente tarefa intelectual de analisar os elementos formais de um texto – o enquadramento, a dicção, a metáfora e o tempo –, para prestar atenção ao que nele acontece. Claro que a "leitura" do argumento tem vindo a ser ridicularizada, sendo algo que os leitores mais cultos não praticam. Contudo, tal como Peter Brooks afirma na sua influente obra Reading for the Plot, os leitores mais talentosos nunca satisfazem a sua fome sobre “o que aconteceu” e a sua sede de leitura até ao fim da história. De facto, qualquer desejo textual verdadeiro deve ser construído sobre a jovem e espontânea vontade de viajar com o autor para onde quer que o argumento se dirija. “O argumento…parece ser assim, a via central através da qual nós, como leitores, damos sentido em primeiro lugar ao texto para depois, usando-o como modelo interpretativo, dar sentido à vida. “Conhecer e conviver com as personagens, usar a imaginação para entrar em cena e atravessar os eventos, parece ser uma das coisas fundamentais a fazer com uma história.
O argumento de uma história é semelhante a uma proteína: uma cadeia de aminoácidos. Porém, a mera sequência de aminoácidos não é suficiente para esta desempenhar a sua função. Para além da ordem, precisa da forma. Precisa de enrolar-se sobre si mesma e assim constituir pontos de contacto e sítios para outras moléculas. A molécula de hemoglobina, por exemplo, é uma longa cadeia de aminoácidos enrolada de maneira a alocar no seu interior um átomo de ferro. A proteína apenas cumprirá o seu dever de transportar oxigénio quando na sua configuração puder aninhar este átomo. Do mesmo modo, o argumento começa com uma cadeia de eventos cronológicos ligados entre si. Normalmente, estes eventos podem ser descritos em poucas frases: “John Marcher e May Bartram conhecem-se em Nápoles e são apanhados no meio de uma tempestade num pequeno barco de uma baia. Muitos anos mais tarde, voltam a encontrar-se na casa de um amigo comum e caem numa intimidade casual. Nunca se casam, em parte pela crença fatalista de Marcher em que algo de terrível lhe aconteceria. May oferece-lhe o seu amor, mas Marcher não a ouve. A morte de May, devido a uma doença no sangue, faz Marcher perceber o terrível erro que cometera ao não aceitar e retribuir esse amor. O argumento de The Beast in the Jungle de Henry James, construído sobre este fino andaime, instala uma tremenda intensidade e significado, não pela virtude de o “que aconteceu” mas pela virtude de revelar “como aconteceu”, curvando-se sobre si próprio em flashbacks reflexivos e assustadores esforços para vislumbrar o futuro. Aquilo que “abriga” os ninhos desta cadeia de eventos é o amor silencioso de May, o solipsismo odioso de Marcher, o lugar do casamento nas vidas comuns, as fontes de angústia e sofrimento, e a sensação de que o valor de cada um depende da tristeza do outro perante a nossa própria morte. Como é evidente, não podemos separar o argumento da forma como foi concebida. Ao descrever a relação entre o argumento (James chama-lhe ideia) e a sua forma, em The Art of Fiction, James afirma: “à medida que o trabalho é bem-sucedido, a ideia permeia e penetra-o, informa e anima-o, de modo a que cada palavra e cada pontuação contribuem directamente para a sua expressão. Nesta medida, perdemos a sensação da história ser como uma tesoura que pode cortar mais ou menos bainha. A história e a novela, a ideia e a forma, são a agulha e a linha, e nunca ouvi falar de uma alfaiataria que recomendasse o uso da linha sem agulha ou da agulha sem a linha”. Do mesmo modo que o biólogo, hoje em dia, nunca distinguiria entre a anatomia e a fisiologia, o leitor sabe que nunca deve afirmar o argumento como inevitavelmente separado da forma.
No entanto, algo acontece nas histórias que ultrapassa, em grande parte, a linguagem usada ou o estilo adoptado. E “o que acontece” nem sempre é evidente – as ambiguidades proliferam em obras modernistas como To the Lighthouse, de Woolf ou Finnegan’s Wake, de Joyce e nos romances pós-modernistas como Time’s Arrow, de Martin Amis ou The New York Trilogy, de Paul Auster. Os leitores inexperientes temem que argumento não seja visível na sua totalidade. Procuram nas “Cliffs Notes”, ou noutro tipo de fontes, a garantia de que estão a “perceber” o significado a retirar de uma leitura. Através da vivência da leitura, ganham confiança em que as suas interpretações sobre o significado da obra estarão à altura de quaisquer outras. Quando Frank Kermode escreve que “ a ficção existe para descobrir as coisas e ela muda à medida que a necessidade de fazer sentido muda”, sugere a pluripotência e a flexibilidade da mesma em diferentes mãos. “Pois o mundo é o nosso amado código. Efectivamente, gosto de pensar nele como um lugar onde nós… vivendo e lendo, conseguimos viajar de um lado para o outro, adivinhando as congruências, as conjunções e opostos; extraindo segredos do seu segredo, compreendendo as relações, uma álgebra adequada.” Ele convence-nos que a nossa tarefa como leitores pode ser tão enfática como a do escritor, embora de um modo diferente, porque somos nós quem dá um sentido aos eventos do argumento.


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