terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Excerto de George Steiner - Páginas 109-112






Eis porque acredito que a designação “teorias da tradução” não passa de uma denominação arrogante. O conceito de teoria, englobando, como aliás deve englobar, experiências e falsificações decisivas é, como já afirmei, quando invocado pelas humanidades, amplamente falso. O seu prestígio no atual clima de estudos académicos e humanísticos advém de um esforço quase lamentável de imitar a boa sorte, o estatuto público das ciências puras e aplicadas. Os esquemas, as setas com os quais os “teóricos” da tradução adornam as suas propostas são factícios. Não provam nada. O que temos de analisar são os contributos, desanimadoramente escassos e incertos, que os tradutores nos deixam dos seus seminários. Desde a Roma Antiga até ao presente que meia dúzia de pensadores sobre língua e tradução deram sugestões seminais. Estas são, por razões evidentes, pouco mais numerosas que aquelas que tiveram alguma coisa de essencial para acrescentar aos significados da música. A juntar a tudo isto, há todo o volume de tradução per se, do qual cerca de noventa por cento é defetiva ou vulgar rotina, mas que também inclui maravilhas improváveis. As abordagens a este material e ao tipo de questões que coloca são essencialmente intuitivas e descritivas. São narrativas de paciência. A regra é, citando Wittgenstein, a de uma “arte exata”. Foram a filosofia e as poéticas desta arte que tentei demonstrar em Depois de Babel. O livro procurou mapear terreno largamente desconhecido. Foi homenageado ao ser pilhado e saqueado desde então (normalmente sem o devido reconhecimento).

O “movimento de espírito” (nas palavras de Dante) na tradução passa por quatro etapas. Ao nos depararmos com o texto, supomos que este tenha significado, ainda que elusivo ou hermético. Geralmente fazemos esta suposição sem pensar. Postulamos, simplesmente, que o texto a traduzir não é um despropósito, não é uma linguagem aleatória sem nexo nem um criptograma indecifrável. Axiomaticamente avançamos como se houvesse “sentido para ser criado” e transferido. Esta conjetura é, na verdade, audaciosa e surge repleta de consequências epistemológicas. É fundada na crença de que os marcadores semânticos têm conteúdo, de que a linguagem e o mundo que relaciona e com o qual se relaciona são simultaneamente significativos (sem “buracos negros”). Tal crença iguala, exactamente, a de Descartes: a razão humana consegue funcionar apenas se nenhum demónio maligno tiver confundido a realidade de forma a iludir os nossos sentidos ou a modificar as regras da inferência e da causalidade no centro da organização, do “jogo”, da perceção e da compreensão. Qualquer crença operativa deste tipo ou “salto racional” tem, no que diz respeito ao significado das palavras e dos sinais, na sua base, intuições ou implicações psicológicas, filosóficas e, em última análise, teológicas (este é o argumento central de Real Presences de 1989). Estas intuições subscrevem – uma imagem eficaz – atos de fala e as traduções que deles surgem. No plano do imediato, não podemos avançar sem estas ditas intuições.

    Depois do momento axiomático de confiança ontológica, surge a agressão. O tradutor invade o original. Decompõe-no em partes lexicais, gramaticais. Esta dissecação comporta perigos óbvios. Há tantas traduções que matam, literalmente. Imperativa e inevitavelmente o tradutor separa os ligamentos que, em qualquer texto sério, tornam “forma” e “conteúdo” reciprocamente generativos e rigorosamente fundidos. Na grande maioria das vezes, e não só no caso da poesia, tal dissolução é fatal. Paradoxalmente, podem ocorrer fatalidades e traições “a um nível superior”. Se a maioria das traduções ficam muito aquém dos textos de partida, há aquelas que os superam, cuja força autónoma ofusca e marginaliza o “eu” mais humilde do original. Chamo a esta traição “transfiguração”. A grande musicalidade de Umdichtung de Rilke ofusca o fervor interno e intimista dos sonetos de Louise Labé. Ortega y Gasset fala acerca da “tristeza da tradução”. Faz alusão, principalmente, a uma servidão que culmina em desproporção ou num completo fracasso. No entanto, há também uma tristitia que surge, tal como em eros, demasiado violenta e capaz de transformar uma posse.  

     Em terceiro lugar temos o “regresso a casa”, o transporte do sentido “capturado” de regresso à língua e solo maternos. É precisamente com referência à tradução que São Jerónimo, um tradutor formidável, aborda a captura do significado trazido de volta a casa, como se de um triunfo Romano se tratasse. Aqui, uma vez mais, os resultados podem ser ambíguos. As traduções bíblicas de Tyndale e de Luther recriam o inglês e o alemão, respetivamente; através das suas versões, ambas as línguas absorvem o seu génio moderno. A presença importada (“a subjugada Grécia torna-se mestra de Roma”) é tão determinante que a língua materna e sensibilidade ficam profundamente alteradas, de modo a acomodarem a sua chegada e incorporação. As versões traduzidas de Shakespeare têm reinventado os primeiros contornos, os meios imaginativos e a dicção, em alemão e russo. No plano pessoal, a imersão na tradução, a viagem feita para trás e para diante, pode deixar o tradutor desalojado. Este apercebe-se de que não se sente completamente à vontade na sua própria língua, nem naquela (ou naquelas) que, para traduzir, teve de dominar. A imagem de Walter Benjamim é a de um tradutor tão afligido pela metamorfose – é Hölderlin quem ele tinha em mente – que “as portas da sua própria língua se fecham à sua passagem.” Tradutores notáveis mencionaram uma terra de ninguém. 

    O quarto movimento é o cerne da questão. É também o mais difícil de expor, tanto de forma abstrata, como descritiva. Se o exercício da tradução ambicionar, através da invasão e aquisição do original, uma conclusão autêntica, tem a obrigação de compensar. Deve “desempenhar corretamente ” – um idioma desafiante – a sua incursão, rapacidade e ganhos. Sob determinado aspeto, fá-lo concedendo ao original uma nova ressonância, uma vida mais longa, um universo de leitores mais amplo, uma posição mais substancial na história e cultura. A tradução constitui o oxigénio de comunidades discursivas impenetráveis e de tradições negligenciadas. O assunto é, ainda assim, mais subtil. Inevitavelmente, até o mais talentoso dos tradutores irá, tal como o jogo de palavras italiano sugere, traduce. Já terá retalhado, forrado, embelezado, tomado opções limitativas no que toca ao texto de partida. O que um ato verdadeiramente inspirado (raríssimo) de tradução tem a oferecer, como modo de reparação, é algo novo, que já lá estava. Não se trata de misticismo. Qualquer tradutor sensato compreenderá com exatidão aquilo que quero dizer. A poesia, em particular, é tão multifacetada nas suas potencialidades de significado e sugestão ao longo do tempo, tão resistente a qualquer anatomia completa ou paráfrase que contém, num estado tão latente quanto ativo (quantum) energias, energias essas que o tradutor pode extrair, libertar, clarificar. Quando Valéry traduz Vergílio, quando Leyris traduz Hopkins, quando Celan verte Valéry ou Ungaretti, os textos latinos, franceses ou italianos tornam-se, de um modo palpável, mais ricos, melhor concretizados do que antes. Tomaram posse quiçá, pela primeira vez, daquilo que já lhes pertencia. É isto o mais próximo a que consigo chegar para proporcionar um significado e teste comprováveis da “fidelidade” na tradução. Deste modo, o procedimento quadripartido iniciado a partir do encontro, das jogadas de risco de significações até ao ato final da restituição é, fundamentalmente, uma dialética de confiança, um retirar e devolver. Onde é conseguida na perfeição, sendo as grandes traduções muito mais raras do que a grande literatura, a tradução não é menos do que o discurso sentido entre dois seres humanos tendo presente a ética. Isto é, também, parte da herança oriunda da colheita de Babel.  

(por Sónia Macedo e Susana Martins)

Um comentário:

  1. Que reflexões vos oferece este passo?
    Por que não traduzem nomes consagrados da lit ocidental? Tyndale, Luther?
    Atenção que há aqui um problema...
    " Deve “desempenhar corretamente ” – um idioma desafiante – a sua incursão, rapacidade e ganhos"
    Cuidado com os nomes para conceitos cruciais, como "homecoming", que outras alternativas se apresentam?

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