Eis porque acredito que a designação “teorias da tradução” não passa de
uma denominação arrogante. O conceito de teoria, englobando, como aliás deve
englobar, experiências e falsificações decisivas é, como já afirmei, quando
invocado pelas humanidades, amplamente falso. O seu prestígio no atual clima de
estudos académicos e humanísticos advém de um esforço quase lamentável de
imitar a boa sorte, o estatuto público das ciências puras e aplicadas. Os
esquemas, as setas com os quais os “teóricos” da tradução adornam as suas
propostas são factícios. Não provam nada. O que temos de analisar são os
contributos, desanimadoramente escassos e incertos, que os tradutores nos
deixam dos seus seminários. Desde a Roma Antiga até ao presente que meia dúzia
de pensadores sobre língua e tradução deram sugestões seminais. Estas são, por
razões evidentes, pouco mais numerosas que aquelas que tiveram alguma coisa de
essencial para acrescentar aos significados da música. A juntar a tudo isto, há
todo o volume de tradução per se, do
qual cerca de noventa por cento é defetiva ou vulgar rotina, mas que também
inclui maravilhas improváveis. As abordagens a este material e ao tipo de
questões que coloca são essencialmente intuitivas e descritivas. São narrativas
de paciência. A regra é, citando Wittgenstein, a de uma “arte exata”. Foram a
filosofia e as poéticas desta arte que tentei demonstrar em Depois de Babel. O livro procurou mapear
terreno largamente desconhecido. Foi homenageado ao ser pilhado e saqueado
desde então (normalmente sem o devido reconhecimento).
O “movimento de espírito” (nas palavras de Dante) na tradução passa por
quatro etapas. Ao nos depararmos com o texto, supomos que este tenha
significado, ainda que elusivo ou hermético. Geralmente fazemos esta suposição
sem pensar. Postulamos, simplesmente, que o texto a traduzir não é um
despropósito, não é uma linguagem aleatória sem nexo nem um criptograma
indecifrável. Axiomaticamente avançamos como se houvesse “sentido para ser
criado” e transferido. Esta conjetura é, na verdade, audaciosa e surge repleta
de consequências epistemológicas. É fundada na crença de que os marcadores
semânticos têm conteúdo, de que a linguagem e o mundo que relaciona e com o
qual se relaciona são simultaneamente significativos (sem “buracos negros”).
Tal crença iguala, exactamente, a de Descartes: a razão humana consegue
funcionar apenas se nenhum demónio maligno tiver confundido a realidade de
forma a iludir os nossos sentidos ou a modificar as regras da inferência e da
causalidade no centro da organização, do “jogo”, da perceção e da compreensão.
Qualquer crença operativa deste tipo ou “salto racional” tem, no que diz
respeito ao significado das palavras e dos sinais, na sua base, intuições ou
implicações psicológicas, filosóficas e, em última análise, teológicas (este é
o argumento central de Real Presences
de 1989). Estas intuições subscrevem – uma imagem eficaz – atos
de fala e as traduções que deles surgem. No plano do imediato, não podemos
avançar sem estas ditas intuições.
Depois do momento axiomático de confiança ontológica, surge
a agressão. O tradutor invade o original. Decompõe-no em partes lexicais,
gramaticais. Esta dissecação comporta perigos óbvios. Há tantas traduções que
matam, literalmente. Imperativa e inevitavelmente o tradutor separa os
ligamentos que, em qualquer texto sério, tornam “forma” e “conteúdo” reciprocamente
generativos e rigorosamente fundidos. Na grande maioria das vezes, e não só no
caso da poesia, tal dissolução é fatal. Paradoxalmente, podem ocorrer
fatalidades e traições “a um nível superior”. Se a maioria das traduções ficam
muito aquém dos textos de partida, há aquelas que os superam, cuja força
autónoma ofusca e marginaliza o “eu” mais humilde do original. Chamo a esta
traição “transfiguração”. A grande musicalidade de Umdichtung de Rilke ofusca o fervor interno e intimista dos sonetos
de Louise Labé. Ortega y Gasset fala acerca da “tristeza da tradução”. Faz
alusão, principalmente, a uma servidão que culmina em desproporção ou num
completo fracasso. No entanto, há também uma tristitia que surge, tal como em eros, demasiado violenta e capaz
de transformar uma posse.
Em terceiro lugar temos o “regresso a casa”, o transporte do
sentido “capturado” de regresso à língua e solo maternos. É precisamente com
referência à tradução que São Jerónimo, um tradutor formidável, aborda a
captura do significado trazido de volta a casa, como se de um triunfo Romano se
tratasse. Aqui, uma vez mais, os resultados podem ser ambíguos. As traduções
bíblicas de Tyndale e de Luther recriam o inglês e o alemão, respetivamente;
através das suas versões, ambas as línguas absorvem o seu génio moderno. A
presença importada (“a subjugada Grécia torna-se mestra de Roma”) é tão
determinante que a língua materna e sensibilidade ficam profundamente
alteradas, de modo a acomodarem a sua chegada e incorporação. As versões
traduzidas de Shakespeare têm reinventado os primeiros contornos, os meios imaginativos
e a dicção, em alemão e russo. No plano pessoal, a imersão na tradução, a
viagem feita para trás e para diante, pode deixar o tradutor desalojado. Este
apercebe-se de que não se sente completamente à vontade na sua própria língua,
nem naquela (ou naquelas) que, para traduzir, teve de dominar. A imagem de
Walter Benjamim é a de um tradutor tão afligido pela metamorfose – é Hölderlin
quem ele tinha em mente – que “as portas da sua própria língua se fecham à sua
passagem.” Tradutores notáveis mencionaram uma terra de ninguém.
O quarto movimento é o cerne da questão. É também o mais
difícil de expor, tanto de forma abstrata, como descritiva. Se o exercício da
tradução ambicionar, através da invasão e aquisição do original, uma conclusão
autêntica, tem a obrigação de compensar. Deve “desempenhar corretamente ” – um
idioma desafiante – a sua incursão, rapacidade e ganhos. Sob determinado
aspeto, fá-lo concedendo ao original uma nova ressonância, uma vida mais longa,
um universo de leitores mais amplo, uma posição mais substancial na história e
cultura. A tradução constitui o oxigénio de comunidades discursivas
impenetráveis e de tradições negligenciadas. O assunto é, ainda assim, mais
subtil. Inevitavelmente, até o mais talentoso dos tradutores irá, tal como o
jogo de palavras italiano sugere, traduce.
Já terá retalhado, forrado, embelezado, tomado opções limitativas no que toca
ao texto de partida. O que um ato verdadeiramente inspirado (raríssimo) de
tradução tem a oferecer, como modo de reparação, é algo novo, que já lá estava. Não se trata de misticismo. Qualquer
tradutor sensato compreenderá com exatidão aquilo que quero dizer. A poesia, em
particular, é tão multifacetada nas suas potencialidades de significado e
sugestão ao longo do tempo, tão resistente a qualquer anatomia completa ou
paráfrase que contém, num estado tão latente quanto ativo (quantum) energias,
energias essas que o tradutor pode extrair, libertar, clarificar. Quando Valéry
traduz Vergílio, quando Leyris traduz Hopkins, quando Celan verte Valéry ou
Ungaretti, os textos latinos, franceses ou italianos tornam-se, de um modo
palpável, mais ricos, melhor concretizados do que antes. Tomaram posse quiçá,
pela primeira vez, daquilo que já lhes pertencia. É isto o mais próximo a que
consigo chegar para proporcionar um significado e teste comprováveis da
“fidelidade” na tradução. Deste modo, o procedimento quadripartido iniciado a
partir do encontro, das jogadas de risco de significações até ao ato final da restituição
é, fundamentalmente, uma dialética de confiança, um retirar e devolver. Onde é
conseguida na perfeição, sendo as grandes traduções muito mais raras do que a
grande literatura, a tradução não é menos do que o discurso sentido entre dois
seres humanos tendo presente a ética. Isto é, também, parte da herança oriunda da
colheita de Babel.
(por Sónia Macedo e Susana Martins)
Que reflexões vos oferece este passo?
ResponderExcluirPor que não traduzem nomes consagrados da lit ocidental? Tyndale, Luther?
Atenção que há aqui um problema...
" Deve “desempenhar corretamente ” – um idioma desafiante – a sua incursão, rapacidade e ganhos"
Cuidado com os nomes para conceitos cruciais, como "homecoming", que outras alternativas se apresentam?