Não me lembro da primeira vez que tresli o Génesis II. Mitógrafos, muito antes de Freud, sabiam que as fábulas podem esconder o seu original, primitivo sentido, que, de facto, podem invertê-lo completamente. Fascinado pelo jogo e pela maravilha das línguas, senti, já em criança, que a história de Babel era um “disfarce”, que invertia um verdadeiro e mais antigo sentido. Esforçando-se por celebrar a monarquia cósmica de Deus, as tribos juntaram-se para construir um sublime arranha-céus, uma espiral ascendente, que poderia levar a sua veneração mais perto da celestial omnipotência. Para recompensar este venerável trabalho, o Senhor concedeu aos homens o incomensurável dom das línguas. Deu aos homens e mulheres a luz, a inesgotável riqueza de Pentecostes. Longe de ser uma maldição, a cornucópia das diferentes línguas jorrada sobre a espécie humana constituiu uma bênção sem fim. Sem dúvida que um momento de reflexão tornou-o óbvio.
A nossa condição biológico-somática está genuinamente ligada. Pára e termina pela própria extinção. É uma eterna refém da fraqueza, doença, decadência e limitação. O recém-nascido é velho o suficiente para morrer (Montaigne). Uma desgastada mas justificada retórica insiste na brevidade, brutalidade, fealdade ou no tédio fundamental da grande maioria das vidas, no “silencioso desespero” como disse Thoreau, e nem sempre silencioso, que habita em todas mas excepcionais horas, ilusões ou epifanias em qualquer vita comum. Um realismo irrefutável fortalece o grego arcaico postulado, pelo qual “É melhor não nascer ou, melhor do que isso, morrer jovem”, o envelhecimento a ser, com tão poucas excepções, um desperdício fétido, uma incontinência mental e corporal posta em carne viva pela lembrança do que não foi realizado.
(…)
Estou convicto que estas emancipações dos constrangimentos do físico, da parede em branco da nossa própria morte e de uma aparente eternidade de desapontamento pessoal e colectivo, estão em cruciais capacidades linguísticas. Bio-socialmente, somos, de facto, mamíferos de curta duração, destinados à extinção, tal como todas as outras espécies. Porém, somos um animal-língua e é este dom que, mais do que qualquer outro, torna suportável e frutífero o nosso efémero estado. A evolução na fala humana, pode ter chegado tarde, de subjuntivos, optativos, condicionais contrafactuais e de futuridades do verbo (nem todas as línguas têm tempos) definiu e salvaguardou a nossa humanidade. É porque nós conseguimos contar histórias, matemático-cosmológicas ou fictícias, sobre a existência de um universo daqui a um mil milhões de anos; é por causa de conseguirmos discutir, como mencionei, conceptualizar a Segunda-feira de manhã a seguir à nossa cremação; é porque “frases se” (“Se eu ganhasse a lotaria”, “Se Schubert tivesse vivido até mais tarde”, “Se desenvolvessem uma vacina conta a SIDA”) podem, faladas arbitrariamente, negar, reconstruir e alterar o passado, o presente e o futuro, mapeando de outra maneira os determinantes da realidade pragmática, cuja existência continua a valer a pena experimentar. Esperança é gramática. O mistério da futuridade ou liberdade – estas duas são intimamente aparentadas – é sintáctico. Optativos, os modos gramáticos de sentir falta, abrem a prisão da necessidade fisiológica, das leis mecânicas. Existe alguma indicação de utopia mais concisa do que a da forma verbal francesa, le plus-que-parfait? Não se deve ficar parado no constante armazenamento na capacidade dos pretéritos para reconstruir a história, bem como o nosso próprio passado? Esta volta extraordinária está compactada na famosa intraduzível frase de abertura de A la Recherche, de Proust. No entanto, mesmo estas gramatologias de emancipação rendem-se ao milagre, certamente não é para menos, do futuro “to be”, “shall” e “will”, cuja articulação gera os espaços de manobra do medo e esperança, da renovação e inovação, que são a cartografia do desconhecido.
Atenção a certas assintaxes, "É porque nós conseguimos contar histórias, matemático-cosmológicas ou fictícias, sobre...."
ResponderExcluir"mesmo estas gramatologias de emancipação rendem-se..."
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Atenção a certas assintaxes, "É porque nós conseguimos contar histórias, matemático-cosmológicas ou fictícias, sobre...."
ResponderExcluir"mesmo estas gramatologias de emancipação rendem-se..."
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