segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

George Steiner p.103-105



George Steiner p.103-150

A um nível evidentemente menor, devo as circunstâncias da minha vida e do meu trabalho a este entrelaçado de três línguas iniciais, à sua pulsação e ao seu cintilar dentro de mim. Fica para outros ajuizarem se os efeitos da interferência resultante desta tripla identidade, e o que quer que eu tenha adicionado de outras línguas (um longo caso amoroso e uma comédia de erros em, e com, o italiano), terão incapacitado a minha escrita e, se for esse o caso, de que modo. Ou se, como eu acredito que seja, é o significado do seu significado. As recompensas têm sido expressivas. Há uma alegria perpétua, algo de extraordinário em escrever em inglês, em francês, em alemão; em ensinar nestas três línguas; em crer, e no caso do francês perentoriamente, ser nativo em cada uma delas. E haverá, para qualquer escritor ou “pensador” - aquela rubrica francesa e alemã tão irritante aos ouvidos anglo-americanos - melhor hora do que aquela passada com os seus tradutores, modulando a língua na qual foi escrito o ensaio ou o livro para outra, que também lhe pertence? A tradução, aquele fruto de Babel, é efetivamente essencial.

Isto ocupou-me uma vida de trabalho inteira. Qualquer ato e movimento de significado (o reino da semiótica) comporta tradução. A forma pode ser oral, gráfica ou simbólica; pode ser um sinal de semáforo ou uma investigação metafísica. O recetor “traduz” aquilo que ouve, lê ou que apreende. Acima de tudo, fá-lo na sua própria língua. A tradução é, primeiramente e antes de tudo, intralingual. Serve para decifrar mensagens entre falantes e escritores dentro da mesma comunidade linguística. Normalmente esta decifração recíproca ocorre sem uma perceção consciente, mas na realidade este processo é extremamente complexo - e sempre surpreendente. No entanto, muitas vezes deveria convidar a uma atenção deliberada. Crianças e adultos traduzem o idioma de cada um, tal como gerações sucessivas. A língua movimenta-se e muta-se perpetuamente. Regiões, mesmo localidades vizinhas, têm os seus próprios dialetos e pronuncias (a lagoa Veneziana é Babel). Tal como as classes sociais. Estas diferenças geram diversas identidades e códigos de intenções. O encontro de sotaque com sotaque, de inflexão com inflexão, requer interpretações (traduções) de valores politico-ideológicos, de contrastes entre memória histórica e alusão, de esperanças (tempos verbais de futuro) que diferem subtilmente ou radicalmente. Trocas linguísticas entre homens e mulheres são, demasiadas vezes, um contrato para o desentendimento.

Aliás, esta corrente constante de tradução talvez não seja destinada a ser a descodificação final. Todo e qualquer ser humano fala um “idioleto”: isto é, uma linguagem, uma gíria que permanece em alguns aspectos do léxico, da gramática e da semântica, individual. Com o tempo, com a experiência individual, estes aspectos incorporam associações, conotações, acreções de memórias íntimas, referências individuais e privadas para o falante ou escritor. Para cada um de nós existem harmonias, determinadas palavras, expressões que podem estar  cravadas na nossa consciência ou a ramificar-se, por assim dizer, para o subconsciente, cujos padrões de sentido, cuja carga específica é profundamente nossa. Estes elementos traduzem apenas parcialmente, mesmo nos processos mais escrupulosos da comunicação partilhada. Todas as permutas ficam incompletas. Pouco investigado é o intrincado jogo do solilóquio. Abarcamos diferentes vozes dentro de nós. Estas podem determinar diferentes jogos linguísticos. No balbuciar estridente ou no silêncio da esquizofrenia as condições mínimas da interação social interna estilhaçam-se. Mas em quê?

A tradução interlingual, o empreendimento depois de Babel, simplesmente replica, numa escala de grande visibilidade e finalidade, o modelo de transferência dentro de toda qualquer língua.

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