Uma
Vida Examinada
(excerto)
(excerto)
A
minha mãe, tão vienense, geralmente
começava as frases numa língua e terminava noutra. Parecia não ter
consciência das admiráveis modulações e alternâncias de sentido
que tal produzia. Línguas voavam pela casa. Inglês, francês e
alemão na sala de jantar e na sala de estar. O alemão de Potsdam da
minha ama no berçário; húngaro na cozinha onde, por acaso ou por
destino, uma série de senhoras magiares – recordo-me delas como
sendo verbosas e irascíveis – preparavam os pratos favoritos do
meu pai. Não tenho qualquer memória de uma primeira língua ou
língua de berço. Tentativas posteriores para desenterrar tal
língua de dentro de mim, testes psicológicos, a hipótese de que a
língua com que gritara para a minha mulher quando nos deparámos com
algum percalço na estrada deveria ser a base linguística, todas
resultaram em vão (mesmo em momentos de pânico ou choque, a língua
usada é contextual, é a língua do interlocutor ou do local). Seja
no uso quotidiano ou na aritmética mental, na compreensão da
leitura ou no ditado, o francês, o alemão e o inglês têm sido
para mim igualmente “nativos”. Quase invariavelmente, a língua
em que sonho é simplesmente aquela em que falei, ou que aconteceu
ter sido mais ouvida durante o dia. É como se o subconsciente semântico
fosse ele mesmo linguisticamente circunstancial de um modo algo óbvio
e material.
Naturalmente, ocorrem lapsos momentâneos de fluência, de
imediatismo e recursos lexicais ou gramaticais, quando estou, durante
certo tempo, sem escutar ou falar regularmente qualquer uma das
minhas três “línguas maternas”. Para além disso, podem acontecer efeitos de interferência involuntária, de uma língua que se
interpõe, insistindo em ter primazia entre as outras. A sensação
assemelha-se ao rasgar brusco de um tecido de seda furta-cor. O
idioma necessário, a variação da sintaxe parece, de repente,
emanar de outra língua. Geralmente, contudo, as três línguas estão
em pé de igualdade, e quando necessário mantém uma distância
integral entre si. Tenho vivido trilinguamente. Qualquer outra língua
em que consigo fazer-me compreender ou em que consigo ler foi
acrescentada mais tarde, no processo comum de aquisição.
Ao
contrário do que se costuma pensar, esta condição poliglota não é
de modo algum rara. Várias culturas e sociedades são amplamente
bilingues – por exemplo, em regiões vizinhas da Suécia e da
Finlândia, na Malásia, nas comunidades hispânicas da América do
Norte. O trilinguismo é menos usual, mas existe. Pode ser
encontrado em Friul, nos vales fronteiriços da Suíça e do nordeste
de Itália onde são correntes formas locais de romanche, italiano
padrão, e friulano (o tão amado medium
de Pasolini), provavelmente desde a infância. Durante longos
períodos da história, homens e mulheres tiveram que ser bilingues,
comunicando no seu idioma local – que pode ir desde o patoá e
dialecto até à autonomia linguística, como no caso da língua
falada em Bergamo – e na lingua
franca
política e economicamente dominante.
Autoria: George Steiner
Tradução: José António Oliveira