quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012


Uma Vida Examinada 
(excerto)

A minha mãe, tão vienense, geralmente começava as frases numa língua e terminava noutra. Parecia não ter consciência das admiráveis modulações e alternâncias de sentido que tal produzia. Línguas voavam pela casa. Inglês, francês e alemão na sala de jantar e na sala de estar. O alemão de Potsdam da minha ama no berçário; húngaro na cozinha onde, por acaso ou por destino, uma série de senhoras magiares – recordo-me delas como sendo verbosas e irascíveis – preparavam os pratos favoritos do meu pai. Não tenho qualquer memória de uma primeira língua ou língua de berço. Tentativas posteriores para desenterrar tal língua de dentro de mim, testes psicológicos, a hipótese de que a língua com que gritara para a minha mulher quando nos deparámos com algum percalço na estrada deveria ser a base linguística, todas resultaram em vão (mesmo em momentos de pânico ou choque, a língua usada é contextual, é a língua do interlocutor ou do local). Seja no uso quotidiano ou na aritmética mental, na compreensão da leitura ou no ditado, o francês, o alemão e o inglês têm sido para mim igualmente “nativos”. Quase invariavelmente, a língua em que sonho é simplesmente aquela em que falei, ou que aconteceu ter sido mais ouvida durante o dia. É como se o subconsciente semântico fosse ele mesmo linguisticamente circunstancial de um modo algo óbvio e material.
Naturalmente, ocorrem lapsos momentâneos de fluência, de imediatismo e recursos lexicais ou gramaticais, quando estou, durante certo tempo, sem escutar ou falar regularmente qualquer uma das minhas três “línguas maternas”. Para além disso, podem acontecer efeitos de interferência involuntária, de uma língua que se interpõe, insistindo em ter primazia entre as outras. A sensação assemelha-se ao rasgar brusco de um tecido de seda furta-cor. O idioma necessário, a variação da sintaxe parece, de repente, emanar de outra língua. Geralmente, contudo, as três línguas estão em pé de igualdade, e quando necessário mantém uma distância integral entre si. Tenho vivido trilinguamente. Qualquer outra língua em que consigo fazer-me compreender ou em que consigo ler foi acrescentada mais tarde, no processo comum de aquisição.
Ao contrário do que se costuma pensar, esta condição poliglota não é de modo algum rara. Várias culturas e sociedades são amplamente bilingues – por exemplo, em regiões vizinhas da Suécia e da Finlândia, na Malásia, nas comunidades hispânicas da América do Norte. O trilinguismo é menos usual, mas existe. Pode ser encontrado em Friul, nos vales fronteiriços da Suíça e do nordeste de Itália onde são correntes formas locais de romanche, italiano padrão, e friulano (o tão amado medium de Pasolini), provavelmente desde a infância. Durante longos períodos da história, homens e mulheres tiveram que ser bilingues, comunicando no seu idioma local – que pode ir desde o patoá e dialecto até à autonomia linguística, como no caso da língua falada em Bergamo – e na lingua franca política e economicamente dominante.

Autoria: George Steiner
Tradução: José António Oliveira

Excerto de George Steiner (pp. 99-101)



Assim, Babel foi o contrário de uma maldição. A dádiva das línguas é precisamente isso: uma dádiva e uma bênção incalculáveis. A riqueza da experiência, as criatividades do pensamento e dos sentimentos, as delicadas e penetrantes singularidades de conceção viabilizadas pela condição poliglota constituem o preeminente processo adaptativo e a vantagem do espírito humano. Cada dicionário, cada gramática, mesmo que não escritos, corporizam os meios da descoberta evolutiva, nos pensamentos, na lei, nas narrativas que moldam o tempo. Uma língua lança a sua própria rede sobre os mares repletos da totalidade. Com esta rede, capta riquezas, variadas perceções e formas de vida, que de outro modo, nunca seriam concretizadas. (Existem afinidades de privação, ainda que num grau tristemente diferente, entre o monoglota e o mudo.) Sejam quais forem os inconvenientes no que diz respeito à facilidade de comunicação ou à “internet” do lucro prático, a prodigalidade das línguas depois de Babel é um “transcendente darwiniano”. Constitui um motivo de júbilo. Já em criança o sentia, com uma intensidade quase física.
As variedades de crenças e experiências religiosas, a gruta de Aladino das cosmogonias, aquilo a que Wallace Stevens chamava as “ficções supremas” das nossas filosofias e metafísicas, associam-se diretamente às diversidades linguísticas. São constituídas por linguagem (ns). As nossas literaturas são filhas de Babel. A intraduzibilidade decisiva de um texto poético ou filosófico (um assunto que abordarei mais adiante) declara o genius loci interiorizado por todas as línguas. A interação, raramente explorada, entre eros e discurso, dramatiza o privilégio do poliglota.
Podemos imaginar até que ponto a expressão dos desejos e fantasias sobre e entre parceiros sexuais interage com a fisiologia, com a qualidade, a cadência e a atmosfera da relação sexual. Porém, não sabemos quase nada sobre a interface psicossomática na qual o discurso e o sexo cooperam num desempenho conjunto. Existirá conexões entre áreas do discurso e sinapses no córtex e no sistema nervoso parassimpático? O que sabemos é isto: as autossugestões (masturbatórias), os tropos, os tabus transgredidos e o Carnaval impudico do discurso sexual, seja em solilóquio ou em diálogo, são componentes seminais do ato sexual em si. Falamos sexualmente para nós próprios e para os outros antes, frequentemente durante, e após a relação sexual ou o orgasmo. A palavra francesa jactance, jactância, uma emissão pulsante, aplica-se tanto à eloquência como ao erótico.

Close Reading - Rita Charon - Forma





A forma do texto pode ser invisível excepto para os que estão preparados e têm capacidades para a ver. Como escreveu Percy Lubbock em The Craft of Fiction, “A forma de um romance …é algo que nenhum de nós, possivelmente, tenha, de facto, alguma vez contemplado. É revelada pouco a pouco, página a página, e é afastada tão rapidamente como é revelada. Como um todo, completo e perfeito, só pode existir numa memória mais tenaz do que a maioria de nós tem para se fiar”. Herdámos dos estruturalistas uma compreensão mordaz de como um texto é construído e de como os elementos formais do texto – o género, a divisão em partes, a dicção, as metáforas, as características do narrador – o dotam de significado para lá da denotação de palavras específicas ou de casos particulares de enredo. Nas secções seguintes, dou sequencialmente especial atenção ao género, à estrutura visível, ao narrador, à metáfora, à intertextualidade e à dicção, entre os elementos mais importantes da forma literária. Quando ensinamos leitura atenta, encorajamos os leitores a prestar especial atenção a cada um destes elementos da forma, para melhor avaliar não apenas o que trata um texto mas como este exerce a sua influência no leitor. Desenvolvi o hábito de pedir aos alunos para se agarrarem, com firmeza, a cada uma destas categorias ao examinar qualquer texto, especialmente quando aparentam ser inadequados. Identificar as metáforas num progresso interno de apontamento ou tomar consciência de que o género de um sumário de alta ditado sobre a morte de um paciente é um obituário, são novas maneiras de abrir textos -  e autores, e leitores – ao conhecimento do tipo de trabalho que o texto alcança.

Género: Este texto é um conto, um obituário, um romance epistolar, uma lenda gótica, uma comédia negra ou um poema lírico? Cada tipo de texto literário, ou género, tem as suas próprias regras e convenções, exigindo específicas aptidões ao escritor e clamando por particulares formas de atenção ao leitor. Um leitor pode ser completamente enganado se aplicar as regras de leitura para autobiografias à leitura de ficção científica, ou as regras de leitura para a peça Elizabethan à leitura da peça de Beckett.
Porque um género literário é um organismo vivo e activo, que evolui em relação ao seu tempo e cultura, vai-se renovando e aventurando-se num solo novo enquanto se recapitula e presta homenagem ao que o precedeu. Bem como as doenças, os géneros não são entidades estáticas. Novos géneros surgem a partir de antigos, os antigos são revitalizados, aparecem combinações de vários géneros e tomam de assalto o mundo da leitura. O que é The English Patient de Michael Ondaatje? É um romance, claro, mas inserido no romance estão investigações climatológicas sobre areias do deserto e ventos africanos, a física de neutralização de bombas e a história antiga contada por Herodutus. O que é Austerlitz de W. G. Sebald, se não uma combinação contínua de sonho, memória nacional, monólogo psicanalítico e apontamentos do artista? Quando nos apercebemos que o registo hospitalar é um género com as suas próprias regras precisas de composição, desbloqueamos um método poderoso para estudar o próprio texto, bem como a acção que tenta representar.
Impressiona-me o impacto que a identificação do género pode ter em leitores inexperientes. A sugestão de que a história de Tillie Olsen, Tell me a Riddle, é genericamente uma adivinha, ajuda os meus alunos a tolerar as suas próprias dúvidas ao lerem sobre Eva. No ano passado, um aluno ensinou-me que o ensaio reflexivo The Resurrectionist, de Richard MacCann, é uma carta de agradecimento ao dador de fígado mencionado no texto. The Lame Shall Enter First, de Flannery O’Connor, pode ser lido muito mais produtivamente se houver a percepção de que é, tal como o título, uma parábola.

Errata: An Examined Life - George Steiner - Pág. 93 - 95

  



     Não me lembro da primeira vez que tresli o Génesis II. Mitógrafos, muito antes de Freud, sabiam que as fábulas podem esconder o seu original, primitivo sentido, que, de facto, podem invertê-lo completamente. Fascinado pelo jogo e pela maravilha das línguas, senti, já em criança, que a história de Babel era um “disfarce”, que invertia um verdadeiro e mais antigo sentido. Esforçando-se por celebrar a monarquia cósmica de Deus, as tribos juntaram-se para construir um sublime arranha-céus, uma espiral ascendente, que poderia levar a sua veneração mais perto da celestial omnipotência. Para recompensar este venerável trabalho, o Senhor concedeu aos homens o incomensurável dom das línguas. Deu aos homens e mulheres a luz, a inesgotável riqueza de Pentecostes. Longe de ser uma maldição, a cornucópia das diferentes línguas jorrada sobre a espécie humana constituiu uma bênção sem fim. Sem dúvida que um momento de reflexão tornou-o óbvio.
    A nossa condição biológico-somática está genuinamente ligada. Pára e termina pela própria extinção. É uma eterna refém da fraqueza, doença, decadência e limitação. O recém-nascido é velho o suficiente para morrer (Montaigne). Uma desgastada mas justificada retórica insiste na brevidade, brutalidade, fealdade ou no tédio fundamental da grande maioria das vidas, no “silencioso desespero” como disse Thoreau, e nem sempre silencioso, que habita em todas mas excepcionais horas, ilusões ou epifanias em qualquer vita comum. Um realismo irrefutável fortalece o grego arcaico postulado, pelo qual “É melhor não nascer ou, melhor do que isso, morrer jovem”, o envelhecimento a ser, com tão poucas excepções, um desperdício fétido, uma incontinência mental e corporal posta em carne viva pela lembrança do que não foi realizado.
    (…)
    Estou convicto que estas emancipações dos constrangimentos do físico, da parede em branco da nossa própria morte e de uma aparente eternidade de desapontamento pessoal e colectivo, estão em cruciais capacidades linguísticas. Bio-socialmente, somos, de facto, mamíferos de curta duração, destinados à extinção, tal como todas as outras espécies. Porém, somos um animal-língua e é este dom que, mais do que qualquer outro, torna suportável e frutífero o nosso efémero estado. A evolução na fala humana, pode ter chegado tarde, de subjuntivos, optativos, condicionais contrafactuais e de futuridades do verbo (nem todas as línguas têm tempos) definiu e salvaguardou a nossa humanidade. É porque nós conseguimos contar histórias, matemático-cosmológicas ou fictícias, sobre a existência de um universo daqui a um mil milhões de anos; é por causa de conseguirmos discutir, como mencionei, conceptualizar a Segunda-feira de manhã a seguir à nossa cremação; é porque “frases se” (“Se eu ganhasse a lotaria”, “Se Schubert tivesse vivido até mais tarde”, “Se desenvolvessem uma vacina conta a SIDA”) podem, faladas arbitrariamente, negar, reconstruir e alterar o passado, o presente e o futuro, mapeando de outra maneira os determinantes da realidade pragmática, cuja existência continua a valer a pena experimentar. Esperança é gramática. O mistério da futuridade ou liberdade – estas duas são intimamente aparentadas – é sintáctico. Optativos, os modos gramáticos de sentir falta, abrem a prisão da necessidade fisiológica, das leis mecânicas. Existe alguma indicação de utopia mais concisa do que a da forma verbal francesa, le plus-que-parfait? Não se deve ficar parado no constante armazenamento na capacidade dos pretéritos para reconstruir a história, bem como o nosso próprio passado? Esta volta extraordinária está compactada na famosa intraduzível frase de abertura de A la Recherche, de Proust. No entanto, mesmo estas gramatologias de emancipação rendem-se ao milagre, certamente não é para menos, do futuro “to be”, “shall” e “will”, cuja articulação gera os espaços de manobra do medo e esperança, da renovação e inovação, que são a cartografia do desconhecido.