segunda-feira, 27 de junho de 2011

Uma Testemunha dá a sua Versão


Sou variamente outro do que eu que não sei se existe…
- F Pessoa

            Não sei como sei isto,
Mas se uma mera presença pudesse pairar
invisível num quarto, então eu seria
aquele que observava o mais terno
 dos labores enquanto a mulher, a cabeça envolta
 num lenço branco, silenciosamente curvada
 sobre o cadáver que lavava,
 empunhando um pano que embebia
numa bacia esmaltada e retorcendo
escorria-o com as mãos magoadas.
 Havia outros naquele quarto. Eu vi-os.
Alguns eram vizinhos, claramente vindos
para oferecerem ajuda e experiência.
Um homem foi ficando, vestido com calças
cinzentas de lã presas por suspensórios de pele.
Parecia confuso e desmedidamente triste
como só um homem pode parecer quando não
lhe é permitido chorar no seu posto
como  homem nesta casita de tábuas ásperas.
Encostado à parede preta, à entrada da porta
para outro quarto, estava o aquecedor de ferro
e por cima dele os utensílios de cobre. Eu
estava nenhures. Eu era nada, porque não existia
ainda o eu para prestar testemunho, e contudo
eu estava presente quando embrulharam o corpo
envolvendo-o em pano, enfaixando os membros e atando a queixada.

            Basta, podereis dizer, para mim
contar-vos isto — do mesmo modo que alguém
poderia falar de um sonho ao café,
sonhadoramente pensativo, dando a entender
um significado útil como se cada conto
fosse alegoria  e se referisse a uma vida.
Mas estas vidas outras – as vidas deles
Nunca me teriam conhecido entre os demais.
Poderíamos dizer que são meramente vocabulário
esta desencarnada mulher morta e os seus sacerdotes?  
Talvez chegue porque as outras explicações
são entediantes, e contudo eu poderia ir mais longe
e dizer-vos que me lembro doutra
porta por trás de mim, e que eu sabia o que
jazia por trás dela, a rua escura da aldeia
antes da electricidade, as águas cinzentas do oceano,
nunca longe, as outras casas de tábuas,
as cercas, as rosas de inverno fenecidas
e  as belas latadas: e de repente
porque o eu não existe, eu tornei-me
o anjo ou o fantasma, e fui tocado
pelo seu sofrimento e a sua condição mortal.
E porque eles poderiam ter-me intuído
lá ou pensado, mesmo fugazmente, que
não estavam sozinhos, eu fugi até chegar
a este lugar conveniente do esquecimento,
antes que me pudessem imputar alguma coisa
ameaçadora, alguma sabedoria ou poder
ou o mais pequeno dom de intervir.  

Um comentário:

  1. The only suggestion I have for this translation is that maybe you could have used "porque o eu não existia" because in the original, the verb is in the past tense.

    Sara Cunha

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