quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Esperança" (Emily Dickinson)


"Esperança" é a coisa com penas
Que se empoleira na alma

E canta um som sem palavras
E nunca, mas nunca, pára,

E mais doce é ouvido no vendaval;
E dura precisa ser a tempestade
Que poderia desanimar o passarinho
Que mantém aquecidos a tantos.

Já o ouvi nas terras mais geladas
E nos mares mais estranhos,
Entretanto nunca, mesmo no desespero,
Ele pediu uma migalha a mim.



Tradução de Luiz Felipe Coelho



A esperança é coisa com plumas
Que pousa na alma,
Entoa melodias sem palavras,
E não se detém por nada,

Ressoando ainda mais doce no vendaval.
Agitada há de ser a tormenta
Capaz de abater o pequeno pássaro
Que mantém aquecidos a muitos.

Tenho-o escutado na terra mais gélida
E no mais estranho mar;
Mas jamais, mesmo no infortúnio,
Arriscou-se a pedir-me uma só migalha.

trad. J. A. Rodrigues

A "Esperança" é a coisa com penas—

Que na alma se empoleira—

E canta uma cantiga sem palavras—

E nunca pára— a vida inteira—

 

E mais doce— na Tormenta— a ouvimos—

E precisava o vento ser sandeu—

Para afligir a Avezinha

Que a tantos aqueceu—

 

Ouvi-a na mais fria terra—

E no mais estranho mar—

Mas nem no Cabo mais Extreme

Me veio uma côdea esmolar.


(Trad. Margarida Vale de Gato)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Tradução de "The Holyoke", Frank X. Gaspar (versão final)

“The Holyoke”

As letras de ferro em relevo,
duas palavras timbradas em arco
na velha caldeira no quarto de banho,
The Holyoke,
são os primeiros símbolos que alguma vez desvendei
o meu tio-avô dizendo-me os seus sons,
expirando um longo "e" no The
tal como o assobio de uma chaleira.

A caldeira não funcionava.
aqueciamos a água no fogão
numa tina de cobre, nada de especial,
mas um facto a que me apego
tal como me apego à qualidade da luz
que parecia sempre derramada
sobre o apertado passeio ao longo da casa,
um cinza invernal, gelo antigo, brasa de carvão,
a película sobre o olho do meu tio-avô.

Quando o meu tio-avô morreu
a sua pensão deixou de chegar.
Esses foram os tempos negros.
Pouco depois fiquei curioso.
Abri a porta arqueada
da velha caldeira
e fitei uma serpentina em espiral
inchada de poeira
Passei o lá o dia
no chão do quarto de banho,
medindo o caminho até ao coração da coisa,
revirando tubos,
remexendo peças com um velho cabide.

Quando acabei, enchi a garrafa de petróleo
e acendi o pavio
Descia o crepúsculo, e rasa luz
pendia na janela quadrada.
Quando abri a torneira, caiu água,
Staccato, castanha, quente como carne.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Traduções Frank X. Gaspar


Último Hino à Noite

                                                                                  A mais divina melancolia
- Milton
                       
Que a casa durma
Que a cidade continue as suas repercussões irrequietas,
Que as doninhas citadinas assaltem os frutos dos meus limoeiros,
Que o caminho para a minha garagem
reflicta o brilho vulcânico da lua.
Que os mortos falem da única forma que eu compreendo
e que eu escute.
Que eu seja forte
agora que os fracos dormem e se salvam a si próprios,
pois como tu, caminho para além
do amor e da esperança.
Acho que sabes o que quero dizer:
Que haja café, escuro e simples
na caneca azul sobre o tampo da mesa vincado de múltiplos anéis
e o whisky puro no copo de vidro entre
 livros atravancados e pilhas de papéis,
e lápis longos e perigosos, e a máquina
para escrever.
Que gema a relva aparada sob o trilho dos caracóis,
Que o gato dos vizinhos ecoe no telhado, que
o candeeiro arda na minha janela em alerta amarelo de que
que, por vezes
me derramo através de uma fresta na porta
e me encolho nas sombras a amarrar números às estrelas
no céu rombo da cidade.
Que eu me esqueça que haverá um tempo para o meu silêncio
                        Que eu apenas me lembre de como são os jacarandás
Engrinaldados na bruma nocturna, o brilho de sódio
da iluminação da rua ateando-lhes auréolas nos ramos, que
os aquecedores sacudam com o seu leve batimento,
que o tambor distante do frigorifico
cesse subitamente e nos mergulhe no mundo vático:
Que eu me volte na roda e que imite
os pequenos suspiros de enlevo e coragem,
sacudindo a poeira e a aversão do dia,
que eu alcance
a linguagem vacilante do quarto e ache uma pulsação,
que eu preencha a ardósia negra do bairro
com desenhos tipográficos e pés de tipos de letra,
Que por toda a parte a noite esparza preces encantatórias.
Acho que sabes o que quero dizer:
Que os melros chilreiem loucura pelas chaminés.
Que os cães distantes chorem como postes ao vento.
Que o jasmim floresça.



As Primeiras Revelações 


No início há o sopro, dentro e fora, um mundo a entrar 
noutro mundo e a deixá-lo novamente, o cordão de ouro ou 
o cordão de prata – não me recordo qual, mas é algo 
assim – algo que nos faça seguir em frente mesmo quando 
comemos pão rançoso e não conseguimos encontrar um livro que 
nos caiba nas mãos certa noite. É de loucos, este dedilhar nervoso nas teclas, 
tentando fazer qualquer coisa e, no fundo, as palavras não passam 
afinal de varas ou setas e os poemas querem cravar-se 
no coração de alguém apesar do caos que lá há, ou encostar a alma de alguém ao tutano 
de uma árvore para podermos, por fim, 
dizer “alma” sem deixar ninguém nervoso. Esta chuva ultimamente. 
Esta melancolia e a tremenda flagelação das telhas, o chicotear 
das calhas. Fui ao quartel dos bombeiros buscar sacos de areia e ainda assim 
apareceu a água, negra e fraca e com cheiro a gesso. Não é tão mau 
como disseram, mas anjos negros de novo, sentados no meu peito, tão extasiantes, 
mesmo quando me arrastaram para baixo. Nunca se vão embora. 
É como se estivessem na casa deles. Temos de dizer uma coisa quando queremos dizer outra, 
sempre, senão não nos respeitam e eles são perigosos. Isto sou eu 
em Janeiro, a varrer a água da garagem, a abrir as portas 
e janelas para fazer corrente de ar, a deixar as coisas enxugarem. No jardim, 
galhos caídos, baldes de folhas ensopadas. No mar, a corrente 
outra vez morna, 16 graus, a rebentação, quatro metros por vezes na crista da onda, 
a norte, e os jovens e os fortes nos seus jipes enlameados, as suas 
pranchas e fatos de mergulho, a caminho daquele êxtase mais profundo. Bem, 
todos vão embora para algum lado e nenhum dos caminhos é longo. 
Eu, eu cá parto para dentro para ler sobre o regente da terra e do céu, 
As Primeiras Revelações. Quem ama reza sempre, por exemplo. Podemos 
ler isto todo o dia enquanto os raios e os trovões ribombam e depois 
outro dilúvio como pregos a bater nas paredes. Palavras conhecidas numa 
ordem surpreendente, simples e irreconhecível. Ou o espanto vocálico 
das Suras, que estão sempre fora do meu alcance. As imagens 
de água, a filigrana do oásis, o poço, paraíso numa terra seca, 
Alá o Misericordioso, que se não pode abarcar, que não foi concebido e 
que não concebe. Mistérios para os desterrados e que não saem de casa. 
Tijolos em combustão. O dilúvio, indiferente e implacável. A 
muralha de escuridão invernal. Quase conseguimos ouvir os céus a abrir. 

De um modo geral, a principal dificuldade que sentimos na tradução de ambos os poemas – Last Hymn to Night e The Early Relevations – de Frang Gaspar, prendeu-se com a interpetação de alguns versos, cujo sentido foi difícil apreender e que nos fizeram incorrer em alguns erros tradutórios, como por exemplo:

-    Last Hymn to Night: “(…) that sometimes / I will spill through a crack in the door” (linhas 22 e 23) e “Let me turn at the mill (…)” (linha 33);

- The Early Revelations: “Not so bad all told, (…).” (linha 14) “62 degrees, surf, fourteen feet at some of the northern beaks (…).” (linha 22)

Outra dificuldade prendeu-se com o campo lexical, visto que algumas palavras não tinham correspondência em português e outras ofereciam várias alternativas possíveis.

Last Hymn to Night
Divinest melancholy;
- Possums;
 Many-ringed desk;
- Thud;
- Hunch;
- Blunt;
- Sodium glow;
Kick on;
- Vatic world;
- Stems and serifs;
Orisons.

The Early Relevations
The Early Revelations;
- Pecking;
- Clap;
- Gypsum;
Exhilarating;
- Lovers pray continually;
-Vowelic dazzle;
- Fathomed; 

Trabalho de: Sara Cunha e Andreia Caeiro

domingo, 20 de maio de 2012

Harold Pinter - 2 poemas + comentário à tradução

Ao contrário do que se passa nas peças de teatro de Harold Pinter, cujos temas principais estão relacionados com uma visão existencialista do mundo — as limitações humanas, os afectos, a busca da verdade — que acabou por caracterizar o seu estilo muito próprio, os seus poemas sempre foram muito mais virados para as suas preocupações mais íntimas. Em vez de serem um reflexo de uma humanidade, desesperada por afecto, incapaz de reconhecer a verdade da mentira, como é a escrita para teatro de Pinter, a poesia apresenta-se como um escape, como uma forma de expressão do homem por trás do dramaturgo, sem preocupações a nível de aceitação pelo público ou pela crítica. Não é de admirar, portanto, que a poesia tenha sido a primeira e a última forma de escrita  a que Harold Pinter se tenha dedicado; e não é de estranhar que as motivações por trás destes poemas sejam puramente pessoais.

O primeiro poema, "America football", é uma grande metáfora acerca da intervenção dos EUA no Iraque e revela o espírito políticamente activista — anti-americano — que Pinter, mais ou menos dissimuladamente, imprimia em todos o seus trabalhos. A linguagem extremamente agressiva, e inspira-se no discurso típico na prática de futebol americano, um dos mais brutais do mundo.
O maior desafio, na tradução deste poema foi, sobretudo, fazer a adaptação do calão utilizado e manter um discurso agressivo sabendo, de antemão, que o verdadeiro tema aqui é a guerra e não um mero jogo.


Futebol Americano

Aleluia!
Funciona.
Arrebentámos-lhes(1) com aquela merda toda.

Arrebentámos-lhes com aquela merda pelo cu acima
até lhes saír pela porra das orelhas.

Funciona.
Arrebentámos-lhes aquela merda toda.
Sufocaram na sua própria merda!

Aleluia!
Louvado seja o Senhor por tudo o que há de bom.

Escaqueirámo-los(2) num monte de merda
Estão a comê-la

Louvado seja o Senhor por tudo o que há de bom.

Escaqueirámos-lhes os tomates em pó,
em porra de cacos de pó.

Conseguimos.

Agora quero que venhas cá beijar-me na boca.
 
(1) Estando no universo de uma linguagem rude e de calão, optou-se por "arrebentar" em vez de "rebentar" pelo facto de o primeiro ter uma expressão mais onomatopeica, soando a um grito bárbaro como "Arrrrgh!".

(2) Existe um paralelismo, no texto original, no começo dos versos com o verbo "blow". No entanto este é utilizado na sua forma de "phrasal verb" que permite uma variedade semântica grande ao mesmo tempo que permite a sua repetição — "blew out", "blew up", "blew out", "blew into". Ora, em português o verbo, "arrebentar/rebentar" não permite ter tantas opções com em inglês: "blew into" remete para um tipo transformação que o verbo "arrebentar/rebentar" não tem. Assim, em vez de "Arrebentámos-lhes os tomates até ficarem em cacos de pó" propomos uma versão mais económica "Escaqueirámos-lhes os tomates em pó" mesmo comprometendo a repetição do texto original.

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O segundo poema é bem mais pessoal e remete para a luta que Harold Pinter travou contra um cancro no esófago que acabou por lhe tirar a vida. A principal dificuldade foi conseguir preservar as frases curtas e a economia das palavras que dão ao poema o ar de ser o último sopro de vida de um homem às portas da morte.

"As células do cancro são aquelas que se esqueceram
como se morre" - enfermeira, hospital de Royal Marsden

Esqueceram-se como se morre
e assim prolongam a sua vida assassina.

Eu e o meu tumor lutamos a todo custo.
(1)Que uma morte dupla seja posta de parte.

Preciso de ver o meu tumor morto
Um tumor que se esquece de morrer
Mas que em vez disso me quer assassinar.

Mas eu lembro-me como se morre
Embora todas as minhas testemunhas morreram.
Mas eu lembro-me o que disseram
De tumores que as tornariam (2)
Tão cegas e mudas como foram
Antes do nascer(3) dessa doença
Que pôs o tumor em cena.

As células negras mirrarão e morrerão
Ou será à sua maneira e cantarão de alegria.
Procriam tão silentes noite e dia,
Nunca se sabe, elas nunca dizem.


(1) Para uma maior economia de palavras, optou-se por suprimir a palavra "esperemos"/"let's hope" e usar o conjuntivo, de modo a exprimir desejo.

(2) Em termos semânticos, o verbo "render" tem inúmeras possibilidades, o que torna o seu significado, neste caso, muito ambíguo — pode ir desde "dar", "tornar" até "render-se", que também teria alguma razão de ser, dado o contexto. Aqui optei por "tornar" já que temos uma mudança de qualidades no que se refere ao sujeito do verso (as testemunhas ficaram mudas e cegas)

(3) Normalmente nominalizações de verbos são de se evitar, mas neste caso o verso ficaria demasiado longo com a palavra "nascimento".

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Tradução do texto "Translation of Children's Literature", Zohar Shavit


Normas de Tradução de Livros Infantis
            Ao contrário de tradutores contemporâneos de livros para adultos, o tradutor de literatura infantil pode dar-se a grandes liberdades no que diz respeito ao texto, como resultado da posição periférica da literatura infantil dentro do polissistema literário. Isto é, o tradutor pode manipular o texto de várias maneiras alterando-o, aumentando-o, condensando-o, apagando ou acrescentando elementos. No entanto, todos estes processos tradutórios apenas são permitidos se forem condicionados pela adesão do tradutor aos seguintes dois princípios nos quais a tradução para crianças é baseada: uma adaptação do texto para o tornar apropriado e útil para a criança, de acordo com o que a sociedade considera (em determinada altura) didacticamente “bom para a criança”; e uma adaptação do enredo, da caracterização e linguagem, prevalecendo as percepções da sociedade relativamente às capacidades de leitura e compreensão das crianças.
            Estes dois princípios, enraizados na auto-imagem da literatura infantil, tiveram diferentes relações hierárquicas em períodos distintos. Assim, por exemplo, enquanto o conceito de literatura infantil didáctica prevalecesse, o primeiro princípio, baseado na compreensão da literatura infantil como uma ferramenta de educação, seria dominante. Hoje em dia, a ênfase difere; embora até um certo nível o primeiro princípio ainda dite o carácter das traduções, o segundo princípio, o de ajustar o texto ao nível de compreensão da criança, é mais dominante. Contudo, é possível que os dois princípios nem sempre se complementem: por vezes, até podem contradizer-se. Por exemplo, pode pressupor-se que uma criança consegue compreender um texto que envolva a morte e, ao mesmo tempo, o texto pode ser visto como prejudicial ao seu bem-estar mental. Numa situação destas, o texto traduzido pode eliminar, completamente, um aspecto a favor de outro, ou talvez até inclua características contraditórias, porque o tradutor hesitou entre os dois princípios. De qualquer forma, estes princípios geralmente complementares determinam cada etapa do processo de tradução. Ditam decisões relacionadas com o procedimento de selecção textual (quais os textos escolhidos para tradução), tal como com a manipulação admissível. Também servem como base para a afiliação sistémica do texto. Mas acima de tudo, de modo a ser aceite como um texto traduzido para crianças, para estar afiliado com o sistema infantil, o produto final da tradução tem de cumprir estes dois princípios ou, pelo menos, não os violar.

Nível de Complexidade do Texto
            Como referido anteriormente, a integralidade do texto é directamente afectada pela necessidade de o encurtar e pela exigência de um texto menos complicado. Ao encurtar um texto, os tradutores têm de garantir que reduzem, também, as proporções entre elementos e funções, fazendo com que menos elementos carreguem ainda menos funções. Em contraste com a literatura para adultos canonizada, na qual a norma de complexidade é a que mais prevalece hoje em dia, a norma de modelos simples e simplificados ainda é proeminente na maior parte da literatura infantil (canonizada ou não), tal como no caso do sistema para adultos não-canonizado. Esta norma, enraizada na auto-imagem da literatura infantil, tem tendência a determinar não só as temáticas e a caracterização do texto, mas também as suas opções relativamente a estruturas admissíveis.
            No que se refere à questão da complexidade, o texto Alice no País das Maravilhas é bastante interessante. No capítulo 3 de Poética da Literatura para Crianças (Shavit, 1986), indaguei como teria sido aceite o texto por parte de adultos e descobri que foi o resultado das mesmas características que mais tarde adaptadores e tradutores consideraram impróprios para crianças. Aqui abordo, brevemente, o problema do ponto de vista oposto – isto é, para mostrar como o texto se tornou próprio para crianças, questiono quais os elementos alterados de modo a tornar o texto, na opinião do tradutor, próprio para crianças. Regra geral, todos os elementos considerados demasiado sofisticados foram alterados ou eliminados. Logo, os tradutores eliminaram sistematicamente qualquer sátira ou paródia do texto original. Os parágrafos que continham esses elementos não foram difíceis de omitir, pois não contribuíam para o enredo. Pelo contrário, a apresentação complexa do mundo no texto mostrou ser um problema mais sério para os tradutores, visto que não podiam desistir, completamente, dele.
            No original de Alice no País das Maravilhas, Carroll, deliberadamente, tornou impossível determinar se tudo acontece num sonho ou na realidade. Uma apresentação tão complexa não foi aceitável para os tradutores, que eventualmente resolveram o problema ao motivar toda a história como se fosse um sonho. Portanto, a transferência para a literatura infantil resultou numa apresentação simplificada que insistia na clara distinção entre a realidade e a fantasia. Por exemplo, uma das adaptações começa da seguinte maneira: Era uma vez uma menina chamada Alice, que teve um sonho muito estranho”.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Edição da Tradução de "The Seven Sneezes"


Havia uma vez um coelhinho, uma gatinha e um cão que viviam juntos num quintal.

O coelhinho era castanho, com grandes orelhas fofinhas. A gatinha era preta, e como todas as gatinhas tinha umas orelhinhas pequeninas. O cão era um enorme cãozarrão que soltava um poderoso “ão-ão”.

Eram todos felizes, todos contentes. O coelhinho adorava as suas orelhas grandes, a gatinha sentia-se feliz por tê-las pequeninas, e o cão orgulhava-se do seu poderoso “ão-ão”.

Um dia chegou numa velha carroça um homem que fazia negócio com ferro- velho. “Quem tem sucata? Quem tem tralha?” cantava o homem da sucata. O dia estava fresco. O homem da sucata começou a espirrar...

– Quem tem tra...a...a...ah...

O coelhinho, a gatinha e o cão sustiveram todos a respiração até que o homem da carroça terminasse o espirro:

– A... tchim! A... tchum....! A.... tcha-tchão!

Foram três espirros valentes. Tão valentes que o homem da sucata foi lançado num sopro até desaparecer estrada abaixo... com a carroça e o cavalo e tudo!

– Pela minha santinha! – disseram um ao outro o coelhinho, a gatinha e o cão. E depois viram que uma coisa estranha tinha acontecido.

A gatinha preta tinha as orelhas grandes do coelhinho.

E o coelhinho castanho tinha as orelhinhas pequeninas do gatinho.

 – Ora que tolos que vocês parecem – disse o cão.

Mas foi então que também ele se sentiu tolo. Porque, quando abriu a boca, não lhe saiu nenhum poderoso “ão-ão”, e a sua voz era só um débil miau.

– Pela minha santinha digo eu! – exclamou a gatinha.

Mas estas palavras saíram-lhe num terrível e poderoso ão-ão! E até caiu de costas, de tão espantada que estava de se ouvir a ladrar. E foi então que viu as suas orelhinhas pequeninas na cabeça do coelhinho onde deviam estar umas orelhas grandes!

– Dá-me já as minhas orelhas! – ladrou a gatinha.

– Dá-me já as minhas orelhas! – guinchou o coelhinho.

E o cão só sabia correr às voltas, a miar que nem um gato!

O coelhinho ficou com soluços de tão transtornado que estava.

– Foi por causa dos.... hic—hic! ... atchins... que ficámos.... hic––hic!... assim!

– Ão-ão! – ladrou a gata. – Vamos mostrar ao homem da sucata o que os espirros dele fizeram e obriga-lo a pôr as coisas como estavam dantes!

Puseram-se então a caminho em busca do homem da sucata.

Foram andando e logo encontraram uma gansa. Toda ela estava cor-de-rosa e levava todas as suas penas num cestinho.

- Perdão – disseram o coelhinho, a gata e o cão – Mas por acaso não viu um homem da sucata a passar por aqui?

- Não vêem que passou?! – grasnou a gansa, batendo  a sua pata de barbatana. – Espirrou-me as penas todas! E vou à procura dele para obrigá-lo a pôr tudo como estava dantes.

Então lá foram andando todos juntos.

Encontraram logo um galo, que levava a sua crista vermelha no bico e as penas da sua cauda cresciam-lhe na cabeça, onde a crista devia estar.

- Perdão – disseram o coelhinho, a gata, o cão e a gansa cor-de-rosa – Mas por acaso não viu…

- Não digam mais nada – cacarejou o galo, deixando a sua crista cair. – Aquele malvado homem da sucata, sempre a espirrar sarilhos para as pessoas! Vejam só como está a minha bela crista vermelha…cheia de pó! Vou obrigá-lo a pô-la como estava dantes.

 Então lá foram andando todos juntos.

Encontraram logo um menino, que vestia apenas meio casaco e só tinha um sapato. O outro sapato estava virado ao contrário e cima da sua cabeça, como um boné esquisito.

Quando o menino viu os animais e ouviu a gata ladrar e o cão a miar, riu-se tanto que caiu do muro abaixo.

- Também vos espirraram! – exclamou ele . – Ora, não se sintam mal…vejam só o meu belo casaco novo! E o espirro apertou-me tanto o sapato que ele não me sai da cabeça. Puxei e voltei a puxar!

Os animais tentaram ajudar a puxar, mas parecia que o sapato estava espirrado de pedra e cal.

- Vamos procurar o homem da sucata – disse o menino – E obrigá-lo a tirá-lo daqui!

Então lá foram andando todos juntos.

Encontraram logo uma menina no meio da estrada a enrolar os dedos dos pés e a chorar. Tinha nas mãos duas longas tranças cor de caramelo claro. Eram dois belos totós.

Que pena terem sido espirrados da cabeça para fora!

Claro que a menina se pôs a caminho com eles para procurar o homem da sucata.

Passo a passo, os amigos chegaram a uma casa a cair aos bocados.

Lá dentro havia alguém quase, quase a espirrar…

Ah…ah…ah…ah…

Os amigos sustiveram a respiração e esperaram que saísse o espirro.

Saiu…

Catchaia!

O espirro atirou o cavalo e a carroça ao ar!

Aterraram no telhado da casa a cair aos bocados.

- É aqui, de certeza! – gritou o menino. Foram todos a correr bater à porta.


O homem da sucata acenou à porta a enxugar os olhos. Olhou para aquele curioso grupo de amigos.

- Ah! ah! ah! ah! – riu-se.

- Rof! Rof! De que é que te estás a rir? – ladrou a gata.

- Miau! Foste tu, tu e os teus malvados espirros – acrescentou o cão.

- Ah! ah! ah! ah! – riu-se outra vez o homem da sucata, para logo de seguida se assoar. – Então…é assim…que eu espirro!

- O que vai dizer a minha mãe quando lhe disser que fiquei sem tranças? – lamentou-se a menina.

- A escola inteira vai-se rir de mim, quando me virem de sapato na cabeça! – choramingou o menino.

- Ninguém vai gostar de mim com estas orelhas pequeninas – guinchou o coelhinho.

- Nem de mim com estas orelhas enormes! – ladrou a gata.

- Como é que vou guardar a casa sem o meu poderoso ão ão – miou o cão.

- Vou gelar sem as minhas penas – grasnou a gansa.

- Nenhum galinheiro me vai querer – cacarejou o galo com cara de poucos amigos.

- Pronto, pronto – disse o homem da sucata. – Não se zanguem meus caros. Acho que quando espirro me sai uma palavra qualquer esquisita e acontece uma espécie de magia. Mas nunca sei qual a palavra que vai sair, porque nunca espirro duas vezes da mesma maneira.

- Então e nós? O que vais fazer connosco? – perguntaram os amiguinhos em coro.

- Vou tentar espirrar tudo como deve de ser – disse o homem da sucata.

- Portanto, tenho de continuar a espirrar até a palavra certa me sair! Polvilhem-me o nariz com pimenta. Vai ajudar-me a começar.

A menina encontrou a pimenta. – Cá vai – disse ela – com uma sacudidela.

O homem da sucata espirrou, mas só um espirro normal e corriqueiro:

- Chui!

Não aconteceu nada. Nada de nada.

- Mais pimenta, por favor! – disse o homem da sucata – Preciso de me sentir mais espirrador.

A menina tirou a tampa ao pimenteiro. E despejou uma grande quantidade de pimenta no nariz do homem da sucata.

E o homem da sucata fez…

Ahah…ahahum…ahahum…ahahum…ahahum…ahahum…ahahum…

Todos sustiveram a respiração, porque sentiam que algo ia acontecer!

Tchom! Cruzes Canhoto! Chapéus de coco!

E algo aconteceu, sim senhor, mas não aquilo que queriam.

A mobília voou janela fora! A casa levantou-se bem alto! O cavalo e a carroça também. E todos caíram com um catrapum! Num sítio completamente diferente, muito melhor do que antes.

Todos se levantaram para ver se tinham tudo no sítio. Mas não tinham nem um arranhão.

- M…m…ma…ma…mais! - gaguejou o homem da sucata. 

A menina chegou-se à frente. E atirou com todo o pimenteiro ao homem da sucata!

O homem da carroça arregalou-BEM-os olhos!

E abriu-BEM-a boca!

E soltou sete enormes espirros sísmicos!

Catchim!

As orelhas do coelhinho e da gatinha voaram pelos ares! E voltaram a aterrar nos sítios certos… as grandes orelhas do coelhinho e as orelhinhas pretas no gatinho!

Catcham!

O cão saltou pelos ares…e ladrou!

Catchum!

A gatinha miou!

Cactchatchirra!

As penas voaram do cestinho e agarraram-se à gansa outra vez!

Patetchirra!

A crista do galo voou-lhe para a cabeça e as penas da cauda ficaram mesmo no sítio onde devem estar!

Irratchice!

O casaco do menino ficou inteiro num espirro e o sapato voltou no mesmo espirro para o pé!

Irra,chatiche!

Os totós da menina voltaram para a cabeça da menina e de lá não saíram!

Estava tudo de volta ao normal!

- Bolas – disse o homem da sucata, a enxugar os olhos. – Isto é que foi uma trabalheira, mas ainda bem que está tudo na ordem outra vez.

De repente, fez cara de quem ia espirrar. – Fujam! – gritou o homem da sucata. – Fujam todos, enquanto seguro o nariz!

Levantaram-se todos de um pulo e correram para fora do jardim, antes que o homem da sucata conseguisse espirrar outra vez! E foram a correr, a correr até casa!

(Edição de Susana Martins, Telma Ribeiro e Sónia Macedo)